"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Friday, December 25, 2009

O fim é o começo – parte doce

CAMINHO
"Bem no fim do caminho, como flor
Esquecida de alguém,
Encontrei o começo."
(José Reis)


Exatamente uma semana atrás aconteceu a graduação dos estudantes da EPF. No dia seguinte a maioria deles já sabia em que região da província estarão indo trabalhar. Alguns já estão nestes rincões. A ADPP tem um convênio com o Ministério de Educação do país, que indica as áreas de maior necessidade de professores e se compromete a contratar todos os graduados, todo ano.
Eu não acredito que seja esse o meu momento de comentar sobre esse evento. Em outro tempo, quem sabe, quando eu tiver saído do projeto, estiver no Brasil ou em algum outro lugar e pensar nisso com calma, poderei explicar o turbilhão de pensamentos sobre o que aconteceu aqui na EPF desde que cheguei, todas as experiências que vivi e as contribuições – se existiram – que deixei aos alunos que por aqui passaram nesse ano.
Conheci alunos excepcionais aqui. Professores não do futuro, mas do presente. Pessoas que nasceram com o dom de aprender e de ensinar e sob outras circuntâncias e com a inteligência que possuem, estariam galgando posições de destaque em qualquer sociedade, qualquer cidade ou país. Muitos deles ainda têm essa possibilidade. São novos, apenas precisam do apoio, da voz que diga que tudo é possível, basta lutar contra os nossos gigantes, a maioria dentro de nós mesmos.

Faço uma referência respeitosa principalmente aos meus alunos Pacule e Finiasse. A vontade de aprender, a busca, mesmo com as dificuldades - que todos temos - no caminho, mesmo ouvindo de alguns palavras de desincentivo, eles (ambos) tinham um sorriso de canto de boca e na outra oportunidade faziam melhor. Vão ser excelentes professores e poderiam ser qualquer outra coisa que quisessem. Finiasse sempre sorria das minhas broncas, não um sorriso sarcástico, mas aquele de quem descobre um novo jeito de fazer alguma coisa. E conversar com o Pacule sempre me fazia sentir que valeu a pena ter vindo, que eu realmente contribuí com alguma coisa para a educação desse país.

Foi numa conversa com o Pacule que eu aprendi algo de verdade. Porque aprender por ler ou ficar sabendo por ouvir dizer é uma coisa. Aprender de verdade é quando a coisa entranha, o verbo se faz carne. Aprendi que os nossos maiores gigantes, nossos maiores desafios estão dentro de nós mesmos. Não adianta culparmos o nosso nascimento humilde, a corrupção do governo ou a posição dos astros quando do nosso nascimento. Ouvindo ele falar de si mesmo, eu lembro que muitas vezes dei essa mesma desculpa para me deixar ser derrotado. Ele me dizia que os alunos reclamavam que não tinham livros suficientes na biblioteca, que não tinham computadores suficientes e que não havia tempo suficiente para estudo, por isso tantas notas baixas. Eu perguntei em quantas escolas de todo o país de Moçambique haviam bibliotecas, em quantas tinham computadores e em quantas os alunos moravam, comiam e dormiam na escola. Ele me olhou, pensou e disse: “é, acho que o problema está em nós mesmos...”. Vencer a nós mesmos, aos nossos medos, é o nosso maior desafio. Sem desculpas, sem justificativas. É fácil apontar os defeitos e problemas em tudo o que nos cerca. Mas olharmos para nós mesmos inicia um processo de justificativas que não tem fim, a não ser que decidamos deixar de enganar a nós mesmos. E as opções para se integrar em qualquer grupo de excluídos é infinita: latino, negro, nordestino, mulher, homossexual, colonizados, não ter habilidades “x”, não ter graduação “y”. A vitrine oferece várias máscaras para nos escondermos de nós mesmos.

E se eu continuar falando sobre aprendizados por mais linhas do que estas, vou ser obrigado a reconhecer que eu levo mais desses alunos do que propriamente trouxe para eles. Eu ganhei mais do que dei e, no final, tenho que decidir não pensar nessa troca em termos do que é justo ou injusto.
Viver nessa pequena comunidade de Nhamatsane, nas dependências do projeto, com esses alunos, me ensinou coisas para a vida toda, porque o meu próprio eu foi objeto de ensino.
Aí habita o problema do convívio com o diferente. Viver com iguais é confortável principalmente porque massageia o ego. Ouvir, ver e reproduzir sempre os mesmos jargões de nós mesmos, dos nossos iguais, é uma afirmação constante de nós mesmos, da nossa própria beleza. É narcisístico. Nosso sotaque, nossas idéias, nossas tradições, nossos chavões, tudo isso dão testemunho de como especiais nós somos, de que nosso jeito de ser “é uma tradição de há séculos”, como dizia Pessoa.
Então, um dia, você se vê no convívio do diferente, do totalmente estranho e novo. E isso é repugnante. Sim, essa é a palavra mesmo. Daí surgem os motivos de racismo e xenofobia. O diferente é repugnante. Mas acontece que a raiz dessa repugnância é muito discreta. E pode nos fazer pensar que repugnante é o próprio outro. Bem, é aí que mora o engano. O repugnante, na verdade, somos nós mesmos. O outro aparece como um espelho que mostra a nossa própria imagem caricaturada, com defeitos acentuados de forma esdrúxula. O diferente nos obriga a pensar sobre nós mesmos, sobre quem e o que somos. Sem o suporte da masturbação mental nascisística, nós nos achamos no beco-sem-saída da nossa própria imagem, da nossa pergunta sobre nós mesmos.
E o povo com o qual vim morar, nessa simplicidade de vilarejo, são mestres da eloquência em suas ações e jeitos de ser. Tudo é exagerado, retumbante. Se é uma discussão, tem de haver gritos. Se é alegria, que hajam mais gritos ainda. Se é festa, cubram os tímpanos. Se é formalidade, eles são ao extremo. E a aula de “self interior” vai se dando assim, em gestos e ações muito exageradas. Se hoje vamos falar de preguiça, eles passam o dia inteiro sem fazer nada. Se hoje a aula é sobre trabalho, eles passam o dia inteiro na machamba. Se a aula é sobre vida simples, eles vivem apenas com o que plantam no fundo do quintal. Se é sobre a alegria de viver, mesmo em meio a dor, eles fazem as melhores festas e dão os mais belos sorrisos. Tudo aqui é erótico e dionisíaco. Ao mesmo tempo, tudo é de uma contrição da qual eu já até falei em outra postagem anterior.
E assim, nesta barulhenta estranheza e diferença, eu fui aprendendo muito sobre eu mesmo e até resolvi questões existenciais de alguns anos. Claro que isso é assunto apenas para o meu analista, se eu tivesse um...

Enquanto terminava estas últimas linhas anteriores, me veio à mente um momento da formatura que nunca vou esquecer. Um grupo de alunos foram à frente e cantaram uma música muito linda agradecendo à EPF e aos formadores por terem dado a eles a oportunidade de se formarem professores. No final da música era repetido várias vezes a palavra “obrigado”, enquanto eles se dirigiam para fora do salão. Eu estava próximo à porta de saída naquele momento e eles vieram cantando na minha direção. Todos aqueles que foram meus alunos, ao passarem por mim, acenaram e disseram “obrigado”. Eu brinquei, dizendo “de nada”, mas meu coração estava em prantos de emoção. E não posso evitar as lágrimas ao lembrar disso. E lembro de ouvir do Thiago naquele dia que, mesmo sendo tão pouco, aquilo já é muito. Sim, para quem não tem nada, uma gota mata a sede...
Agora, findo o meu trabalho, é o deles que começa.

O fim é o começo – parte amarga

Ao mesmo tempo, eu preciso sair do plano pessoal e tentar uma visão panorâmica do processo de formação de professores. E, nesse momento, o sentimento é outro. Eu não acredito mesmo que deva resolver todos os problemas e nem tenho um plano bem elaborado para transformar o mundo. Precisaria de muita imaturidade e um pouco de imbecilidade para pensar isso. Da mesma forma seria imaturo e infantil o romantismo que não me permitisse olhar com certa distância o que foi feito esse ano na EPF-Chimoio.
No que diz respeito à educação no país, o governo de Moçambique tem se orientado pelos Millenium Goals das Nações Unidas, que fixou metas para o desenvolvimento dos países do Terceiro Mundo. Um dos alvos é a melhoria do sistema educacional e a erradicação do analfabetismo.
Ora, essas metas são baseadas, obviamente, em números. E estes são, por sua vez, ineptos para medir a qualidade da educação. Os números, muitas vezes, servem para maquiar e produzem um efeito inverso daquele esperado. Veja o caso do Brasil, com o seu aumento dos numeros de universidades e de graduados no nível superior, quando descobrimos que, segundo outra combinação de números, mais de 30% deste grupo nas terras tupiniquins são analfabetos funcionais. São incapazes de ler um texto e entendê-lo. O primeiro grupo de números deu uma falsa impressão de que certo problema caminha para a sua solução.
Em Moçambique, a exigência da ONU e a preocupação do governo em resolver esse problema de pressão externa se somam no aumento do problema da educação, transformando o sistema educacional do país numa corrida por formandos.
É o que aconteceu com o programa de formação de professores da ADPP. O período de formação dos professores era de 2 anos e meio até o ano de 2007. A partir de 2008, por pressão do governo moçambicano, a ADPP reduziu o período de formação para apenas 1 ano. Assim, o governo poderá apresentar às Nações Unidas uma bela estatística com inúmeros professores formados e trabalhando nas áreas rurais mais remotas.
Mas, infelizmente, a maioria destes professores não estão preparados para serem aquilo do qual, a partir de agora, estão sendo chamados. Não quero dizer apenas que eles não estão preparados para serem os professores dos meus futuros filhos, mas estão aptos para ajudar no urgente combate ao analfabetismo moçambicano. Não, isso é muito mais sério. Antes de saírem no combate ao analfabetismo, precisaria ter sido combatido o analfabetismo de, talvez, 80% destes alunos. Uma aluna minha, por exemplo, durante uma prática pedagógica, tentava explicar “orações subordinadas adjetivas” aos alunos da escolinha do bairro, sem saber, ela mesmo, o que eram “orações”. Nesse dia, assumi a aula, expliquei para ela e para os alunos o que eram “orações”, o que eram “orações subordinadas”, “orações coordenadas”, até chegar no plano de aula daquele dia... Não era capaz de ler o livro-texto e interpretar. Não saiu, ela mesmo, da escola primária. Aliás, todo esse meu chororô já foi escrito no Golden Cut Report. Mas permitam-me repetir: 1 ano não é suficiente para formar um professor.
O problema não são os alunos-futuros professores. Eles são vítimas, das mais prejudicadas, nesse efeito-dominó dantesco. Saíram da EPF com a informação de que são professores. E, acredite-me, eles acreditaram nessa. Foram enganados pelo Ministério da Educação, pelo Governador da Província (que mandou representante para o evento) e pela EPF-ADPP. E agora se dirigem às comunidades onde irão trabalhar, crendo e espalhando as falsas boas-novas.
E não posso me permitir um otimismo tolo ao dizer que eles vão aprender, porque não vão. Se não aprenderam quando tinham formadores por perto (que não tiveram tempo suficiente para tal), agora eles acreditam que são professores. Tem um diploma para provar e duvido que você os consiga convencer do contrário.
Outro problema é o sistema de ensino, o DmM. Baseado em novas teorias educacionais, é um sistema aberto, onde o aluno acessa um banco de dados e escolhe o que quer aprender. Esse sistema é belo de se explicar, mas na prática não conta com alguns fatores. Primeiro, para um bom desempenho das atividades magisteriais, o formando não pode prescindir de aprender a grande maioria das disciplinas ensinadas no curso de formação de professores. Muito menos num curso que tenha duração de 1 ano. Ao mesmo tempo, ele possui, durante o curso, a ignorância da própria ignorância. Ou seja, ele não sabe o que precisa saber para ser um professor. Ele nunca foi professor antes na vida. Logo, não está apto para decidir o que quer (ou precisa) aprender. Seria como um engenheiro prescindir de aprender geometria espacial. E nesse momento uma ementa tradicional e pré-fabricada (por pior que seja vista pelas teorias educacionais da moda) é a melhor opção.
Além disso, as aulas presenciais na EPF também são “flexíveis”, pois a ementa é decidida a cada 3 semanas pelos formadores, a partir daquela expressão que até hoje eu não sei o que significa: “segundo as necessidades dos alunos”. O fato é que a reunião de decisão das matérias das próximas 3 semanas nunca ocorria. No final, aos formadores eram distribuídas as disciplinas e estes decidiam o que lecionar, sem que houvesse, na maioria das vezes, correspondência e continuidade com aquilo que fora ensinado nas semanas anteriores. Caso houvesse uma ementa tradicional e vinculante, o formador deveria espernear o quanto quisesse contra o autoritarismo da mesma, mas deveria dar aquela aula, seguindo um cronograma com continuidade, o que facilitaria a assimilação do aluno, não mais surpreendido com novidades a cada 3 semanas.
Pior que não ter educação é ter a impressão de que se está educado, sem estar. Isso sim, é o começo do fim.

The Great Zimbabwe!

A grama do vizinho é mesmo mais verde. Para quem se acostuma com o cenário da savana moçambicana, o Zimbabwe se mostra um pedaço do paraíso. Moçambique tem sim as suas belezas naturais, mas o Zimbabwe...
A cidade de Chimoio fica a 40 minutos da fronteira e foi graças a ineficiência tecnológica africana que eu precisei ir ao Zimbabwe finalizar a compra da passagem de avião que vai me levar para um feriado no outro extremo da Africa.
Se eu tivesse que aparecer com qualquer motivo dessa diferença entre os dois vizinhos, a guerra civil moçambicana que destruiu as matas e expulsou a vida selvagem, a ineficiência da colonização portuguesa e o atual descaso do governo e da população seriam os meus preferidos para apontar o lado lusófono da fronteira.
A savana do vizinho, por outro lado, é muito preservada. O cenário realmente muda exatamente na fronteira. Enquanto estamos na província de Manica, as casas são de barro e telhado de palha, nas matas predominam grandes clareiras e é muito dificil cruzar com pelo menos um macaco pelo caminho.
Assim que se recebe o carimbo no ultimo posto moçambicano e cruzamos uma cerca para uma sala com a foto do presidente-ditador Mugabe e um oficial de fronteira com cara de quem não dá a mínima se você não fala shona te manda preencher direito uma ficha para requerer o visto zimbabuano, começamos a ver macacos andando na cerca, javalis um pouco mais à frente e os pássaros são muito abundantes.
Carimbo no passaporte, tentamos escapar dos tipos mais assustadores de animais selvagens, os chamados cambistas, que oferecem dólares por meticais insistentemente. Sobreviventes, pegamos um táxi para Mutare, a cidade mais próxima. Por essa palidez de turista milionário, os taxistas querem cobrar 15 a 20 doláres. Mas eu tinha um trunfo. A minha primeira ida no Zimbabwe foi acompanhada pelo meu amigo e co-worker no projeto, o zimbabuano Kuda. O aumento de melanina garante o preço de apenas 3 dólares.
O cenário até Mutare é muito bonito. Além da vegetação bastante densa e muito verde e dos animais, acompanha a beira da estrada uma infinidade de esculturas com motivos africanos em pedra (serpentine stone). São as pedras que dão nome ao país. Em shona, dzimba dza mabwe significa “grande casa de pedra”.
Mutare é o total oposto de Machipanda, a cidade moçambicana da fronteira. Ao invés de casas de barro, um centro provinciano bem mais, de certa forma, moderno, com muitos carros e alguma pressa. Na estação de onibus, muita gritaria dos cobradores nos convencendo a entrar nas vans para Harare (e ali também chamam van de chapa, como em Moçambique). Um mais afoito pega minha bolsa para levar para a sua van e só consigo parar o feliz quando dou um grito ríspido dizendo para ele “calm down” (sossega a piriquita, para os íntimos...).
Deixamos ali o burburinho e fomos buscar um outro lugar para pegar um ônibus grande, porque Kuda diz que tem as pernas muito compridas e não consegue andar de van (!).
Mas acho por bem dar um salto na história, porque a primeira viagem ocorreu normalmente, com a exceção dos inúmeros animais que eu via da janela do onibus e até um bando de zebras, logo quando entrávamos em Harare.
A segunda viagem, que aconteceu nesse domingo, me deu uma visão melhor do país devido a algumas circunstâncias.
Eu deveria ter ido no sábado com o Kuda. Iria acontecer uma cerimônia tradicional na família e eu fui convidado. Era a chamada morte do boi. Quando um noivo casa, ele dá para a familia do pai da noiva um boi que, depois de certo tempo, conforme a tradição, é morto e comido por todos os familiares. O boi da familia Denga, depois de mais de 20 anos de espera, soube então que seria saboreado naquele domingo pelos familiares.
Mas por motivos alheios à minha vontade (sic, ou – devo dizer – burp!), não pude sair de Chimoio no sábado e então o Kuda foi comer o boi e eu deixei pra ir no domingo mesmo...
Ainda em Chimoio foi uma luta para a van sair. Uma coisa engraçada por aqui é que os onibus não tem um horário determinado para zarpar. Sai quando lota. Enquanto isso o motorista espera até certo tempo na “paragem” e então começa uma ronda pela cidade tentando convencer as pessoas a ir para o destino... Eu já tava com muita pressa, porque não queria chegar muito tarde em Harare. Mas não adiantaram os protestos. Lá algumas 2 horas depois o motorista resolveu sair.
Chegando em Manica, uns 15 minutos da fronteira, o sacana nos informou que tinha umas entregas a serem feitas na cidade. Perguntou para os passageiros remanescentes se isso era problema, como se tivéssemos a opção de escolher.
Depois de muita entrega, o cara resolveu que não ia pra Machipanda e eu tive sorte de encontrar uma outra van que estava indo naquela hora, ao invés de precisar clamar pelos meus direitos de consumidor. Aliás, direitos do consumidor por aqui é uma coisa totalmente inexistente (e, pelo que percebi depois em passagem pela Etiópia, vi que isso se extende por boa parte do continente). Um mito, verdadeira lenda urbana. Os prestadores de serviços, quaisquer que sejam, sempre deixam muito claro como estão fazendo um favor para o cliente e nunca – que eu tenha visto – um serviço é prestado com qualidade. Além disso, como aconteceu nesse caso também, sempre cobram muito caro pelo serviço se você tem pouca melanina na pele. Se você tem dinheiro sobrando, com o tempo se cansa e acaba alimentando o vício e pagando o preço exorbitante. Mas se você é voluntário e tem que economizar, precisa pedir pra ser considerado pessoa ao invés de branco.
Finda a praxe burocrática na fronteira, lá vamos nós na direção de Harare.
No caminho até a capital, a primeira coisa que incomoda o viajante é a interrupção continuada de policiais de trânsito durante todo o percurso. Além dos normais pedágios cobrados a fim de contribuir para os cofres de Mugabe, pelo menos de 15 em 15 minutos somos parados por policiais que pedem propina aos motoristas. Logo na saída de Mutare, o motorista, na ânsia de lotar o carro, voltou à estação para procurar mais clientes e foi parado por 2 policiais que tomaram os documentos do veículo e só liberaram quando o motorista contribuiu para a ceia de Natal daquelas autoridades. E assim foi durante todo o trajeto.
Um pouco mais à frente presenciei uma consequência da hiperinflação zimbabuana. Com vistas a conter uma inflação que chegou a 9.000.000% ao ano (isso mesmo, com essa tanto de zeros!), o presidente congelou os preços, mandou prender os comerciantes que desobedecia essa ordem e causou um desabastecimento geral de mercadorias, o que fortaleceu o mercado negro no país.
Ali pelo caminho, então, o nosso carro precisou de diesel e em nenhum lugar foi possível encontrar. Então, de repente, o motorista saiu da estrada e entrou num atalho camuflado por entre a vegetação. Uns 45 minutos depois chegamos numa casa no meio do mato, onde estava sendo vendido diesel sem o conhecimento do líder máximo daquela nação. Enquanto isso, o meu colega de poltrona tentava me explicar, muito envergonhado, a situação precária do país e os motivos do tão distante diesel. Era sua segunda vergonha naquela noite, pois já tinha sido vexado ao me explicar sobre o caso da propina aos policiais que faziam hora com os documentos do carro e nos impedia a viagem.
Até voltarmos ao caminho de Harare, o único inconveniente real foi a histeria de uma moça que jurava ter ali leões perigosos. Não resisti a piada de dizer para ela aproveitar o safari por aquele preço camarada.

Harare é uma cidade bastante moderna. O centro da cidade mistura a arquitetura londrina com prédios mais recentes e até uma torre com motivos “futurísticos”. Era ali onde a Inglaterra pretendia criar a capital da New England, o mesmo mote da colonização norte-americana. Harare, por sinal, significa, em shona, “cidade que nunca dorme”, um dos títulos tambem de New York City.
Antes da colonização, a região foi palco e sede de grandes impérios africanos, como o reino de Mapungubwe e o reino de Monomotapa, além do reino de Rowzi, todos assentados sob a etnia maShona. O fim desses impérios e reinos são eventos ainda muito recentes na História. Só em meados do século XX é que a Inglaterra consegue ter o controle de todo aquele território. É recente e toda aquela grandeza de alma e orgulho como povo ainda está muito arraigado no coração dos maShonas.
Muitos ingleses se mudaram para a região durante a colonização, que iniciou em 1890, ocupando principalmente a área rural e praticando a agricultura. Em 1980 foi proclamada a independência e desde então o poder está na mão de um único homem, Robert Mugabe.
Mugabe recebeu muitos títulos honorários ao redor do mundo durante a luta pela independencia do Zimbabwe, inclusive o título de Cavaleiro da Ordem da Cruz concedido pela rainha da Inglaterra. A maioria desses títulos hoje estão revogados, inclusive seus cursos de direito em algumas universidades americanas. Ainda assim, sempre que vai ser referido por algum órgão de mídia zimbabuana, antes do nome aparece alguma coisa como Sua Excelencia o Honorável Camarada Secretário-Geral Engenheiro Advogado Comandante das Forças Armadas, Sr Presidente Robert Gabriel Mugabe. E a frase continua mais ou menos assim: "disse hoje, em sua sabedoria, que..."

Outra coisa interessante que notei assim que entrei na região metropolitana é que as pessoas plantam em todos os lugares. Todos os lugares mesmo. Inclusive no espaço destinado à calçada, entre a rua e as casas ou prédios, se tiver terra, as pessoas estão plantando. Em morros, terrenos baldios, qualquer lugar é lugar de plantio. E cada um tem seu espaço, seu quadrado, e ninguem colhe na parte do outro.
Apesar do governo com todas as feições ditatoriais e toda a propaganda que daí decorre, eu senti um inconformismo bem generalizado. Diferentemente do povo moçambicano, que vivem uma forte impressão de que possuem uma democracia e se sentem felizes e conformados com os rumos do país, em Zimbabwe, pelo menos com todas as pessoas que conversei (à exceção do Kuda, que ama Mugabe), sempre sobra uma sensação no zimbabuano de que a situação precisa mudar. E, se lemos a história do país, parece que os tempos atuais estão melhores que os passados. Mesmo assim, todos com quem conversei, por mais que eu tentasse mostrar que a situação nos outros países estava ruim também, me diziam que o Zimbabwe deveria estar melhor e a culpa é do governo mesmo.
Uma situação que prejudica o crescimento econômico e aumenta muito os preços é a falta de moeda local. O governo adotou o dolar zimbabuano, mas a inflação fez com que chegassem à casa dos trilhões de dólares. Mugabe então iniciou um processo de impressão de dolares zimbabuanos e compra e armazenamento de dólares americanos que surgiam no país. A oposição conseguiu então que o dolar local deixasse de ser impresso e a moeda adotada passou a ser o dólar americano.
Acontece que praticamente todo o dólar que chega é de ajuda financeira externa americana (os Estados Unidos, coisa que ninguém gosta de dizer, é o país que mais envia ajuda externa aos países pobres). É interessante: nem nos EUA se vê tanta nota nova, inclusive de 100 doláres. Mesmo em Chimoio, quando vamos trocar meticais por dólares, sempre aparecem notas muito novas. No início eu desconfiava, conferia muitas vezes para ver se eram falsas. Não, são mesmo notas verdadeiras, do Tesouro Americano. Fui trocar alguns meticais com um cambista e ele não tinha nenhuma nota pequena, apenas notas de 100 com poucos dias de manuseio. Foram notas que usei no aeroporto de Cairo, em bancos em Cairo, no Zimbabwe, e foram conferidas também por funcionários destes bancos. Conversando com uma inglesa que mora em Harare e veio ao meu lado no aviao para Cairo, ela me dizia que todo esse dinheiro vem da ajuda externa, principalmente do próprio Federal Reserve.
Além de usar o dólar americano, outro problema é que não existe moedas de centavos americanos. Então, os preços de coisas com valores pequenos são todos aumentados para alcançar o dólar. Uma bolacha, uma pipoca, um parafuso e uma cerveja têm o mesmo preço de 1 dólar. Comprei 6 bananas por 1 dolar, um preco que nenhum lugar dos Estados Unidos cobraria. E no mercado convencional, onde os centavos garantem o lucro do empresário, usa-se a moeda sulafricana, o rand, como forma de dividir o dólar nas suas partes centesimais.
E nessa historia de trilhoes de dolares, algo sobrou para mim. Finalmente, depois de uma vida inteira de trabalho, eu consegui o meu primeiro bilhao de dolar. Na verdade, uma nota de 20 bilhoes de dolares. Como alegria de pobre dura pouco, a nota nao dava pra comprar nem uma banana.

Finalizando, apesar dos pesares, Zimbabwe me pareceu um país muito à frente de Moçambique. Eles parecem incorporar o lema do país, “Unidade, Liberdade e Trabalho”. Não se ouvem lamentos de fraqueza por terem sido colonizados, não colocam os brancos em pedestais como os únicos capazes de ficarem ricos. Muito pelo contrário, o povo zimbabuano é muito trabalhador. Nas ruas do centro da cidade, na área administrativa, muito trânsito de pessoas indo e vindo do trabalho, muita pressa e trabalho por fazer.
Também não vi divisão por questão de cor física. Da parte da população, nenhum problema com brancos, indianos ou chineses que vao ali ganhar dinheiro, montar negócio, negociar, investir e criar empregos. Como disse um amigo quando perguntei sobre racismo e agressão contra brancos em Zimbabwe, ele disse que, nesse tempo de crise, o povo está mesmo é preocupado em trabalhar e ganhar dinheiro. Se alguém propor alguma agressão contra outro por cor ou raça, o máximo que vai ouvir é: “Come on, man, get a life!”

Saturday, December 12, 2009

Na Humana, por Bobby's Band

Fizemos a primeira gravação de uma música da Bobby's Band. Próxima semana acontece a graduação dos futuros professores e, em seguida, cada um será encaminhado para uma região do país - principalmente áreas rurais e com alto índice de analfabetismo - conforme as vagas indicadas pelo Ministério de Educação. Sendo assim, planejamos para essa próxima semana gravarmos 6 músicas da banda num CD que vamos distribuir entre algumas pessoas e, também, deixarmos como um legado para a próxima turma continuar o projeto.

A primeira experiência pode ser ouvida no link abaixo:

http://www.4shared.com/file/171110680/5544ba51/Na_Humana.html

Na voz principal, a futura professora Rosa.
Nos vocais, demais alunos do projeto e este escriba.
No violão, o futuro professor Mateus.
No contrabaixo, o project leader Bobby Williamson.
Na bateria, o futuro professor Isaque Manhacha.
No teclado, este escriba, que nunca tinha tocado teclado à sério na vida e faz uma coisa que não sabe se é forró ou o quê...

As vozes, em alguns momentos desafinadas, dão certa personalidade ao trabalho... rsrs

A música é uma espécie de kizomba.

Aproveitem!


Letra:

NA HUMANA

Na Humana se forma professor do futuro em Moçambique. (repetir ad nauseam)

Em Manica já estão a trabalhar ensinando o DmM.
Em Nacala já estão a trabalhar...
Em Chiuta já estão a trabalhar...
Em Lamego já estão a trabalhar...
Em Quilimane já estão a trabalhar...
Em Chibata já estão a trabalhar...

...ensinando o DmM.

Monday, December 7, 2009

Fórmula mágica

Moçambique tem dois grandes problemas que precisam acabar urgentemente: as Ong's e a Frelimo. Feito isso, o desenvolvimento ocorrerá.