"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Thursday, October 1, 2009

Re-ligare - I

Pacule nascera e fora criado numa pequena vila da província de Inhambane. Ainda era muito novo, com a idade de 5 anos, quando perdeu a mãe. Ela era uma curandeira muito respeitada na região, que cuidava do filho sem a ajuda de um marido. Pacule nem conhecera o pai. Era muito difícil para uma mulher que ocupasse uma posição de líder na comunidade conseguir manter um relacionamento matrimonial. Era embaraçoso para os homens as tomarem para si. Diziam: “Se ela é chefe na vila, vai querer mandar também dentro de casa”. Ou “Onde eu me encaixo como homem? Cuidando da machamba?”.
E o curandeiro, qualquer que fosse o seu sexo, sempre fora, para aquele povo, a pessoa para quem todos eles recorriam nos momentos mais difíceis. Fosse para solucionar conflitos de qualquer natureza existentes entre quaisquer moradores da região, fosse para consultar sobre o passado ou futuro, ou até para benzer a banca de verduras de algum vendedor que vinha amargando prejuízos. O temor a um curandeiro era maior que o temor ao chefe da tribo. Um curandeiro, sabia-se, com apenas uma palavra ou um jogo de búzios, poderia matar alguém instantaneamente. E esse era o respeito que tinha a mãe de Pacule.
Após o funeral, sua orfandade foi protegida pela adoção por uma entidade religiosa que atuava naquela área, mantida pela igreja de orientação metodista. Ali, ele recebeu uma cama, num grande quarto onde haviam trinta e nove outras camas. Destas, desde que Pacule passara a morar naquele orfanato, quase todas sempre estavam ocupadas por crianças que, como ele, por alguma razão, perdera a família. Essa passou a ser a sua família.
O casal de missionários que administravam a casa eram muito gentis. Amavam aquelas crianças como a seus próprios filhos. Atendiam as necessidades de cada um com especial atenção, como se único fosse. Todos os dias serviam alimentos nutritivos e saborosos para todos no refeitório. Antes do mata-bicho acontecia a oração. Após, todos eles se dirigiam à sala-de-aula, dentro do próprio orfanato, onde eram ensinadas as disciplinas das escolas primárias comuns. Além destas disciplinas, também eram ensinadas as lições bíblicas. Terminada a aula, eles voltavam ao refeitório para o almoço. Era sempre alguma refeição muito bem preparada pela cozinheira do orfanato.
Á tarde era reservada para brincadeiras, oficinas onde eles aprendiam várias profissões, liam livros de histórias infantis, cantavam, dançavam. Logo após o jantar, era o momento de culto na capela. Ali, Pacule ouvia sobre a vida de Jesus e outros homens da Bíblia, aprendia orações, cantava lindas músicas e até aprendeu a tocar violão.
Desde pequeno ele sempre se interessou muito pelas histórias bíblicas contadas pelos missionários. Era com especial prazer que participava todos os dias na capela. Quando se destacou nas aulas de violão, começou a acompanhar a missionária nos louvores do culto. Pouco a pouco, sua ajuda ao missionário foi sendo mais essencial. E, algum tempo depois, Pacule ensaiava os primeiros sermões a serem ministrados aos demais.
O tempo foi passando e a cada dia ele aprendia mais o exercício de capelania. Logo, se tornou um orador notável. E, no ano de completar vinte e um anos de idade, decidiu-se: “– Pai, quero seguir os seus passos. Quero me tornar pastor”.
Tudo foi preparado a seu tempo e qual não foi a alegria daquele senhor quando consagrou o pastor Pacule, numa cerimônia simples, porém bonita, que contou, inclusive, com a presença de pastores vindos de várias províncias. Era motivo de orgulho para todos aquele jovem pastor, tão apto à palavra e tão conhecedor dos assuntos teológicos.
Assumiu, assim, a direção de uma pequena igreja numa comunidade próxima. E logo uma outra característica que ficou evidente naquele jovem pastor era a forma cordial e sincera com que tratava as pessoas, sempre com um sorriso no rosto e uma expressão otimista e encorajadora. E naquela mesma comunidade se apaixona por uma dedicada moça da igreja, que, poucos meses depois, toma como esposa.
E, assim, as estações substituíram-se, acrescentando experiência e sucesso àquele ministério pastoral. No decênio da sua consagração foi removido para uma igreja na capital da província. Trouxe consigo a mesma bem-aventurança que o fizera um pastor tão amado pela comunidade em que servira anteriormente. Naquela capital atuaria por mais treze anos. Mas seria ali que a sua vida mudaria para sempre.
Começou com algumas visões que passara a ter, de forma cada vez mais constante. Na maioria delas, apareciam-lhe ossadas humanas distribuídas de formas características. Outros objetos, dispostos como oferendas, também surgiam diante dele, e desapareciam tão repentinamente quanto tinham surgido. Mas a visão que mais lhe perturbava o espírito era de uma mulher, que lhe aparecia muito bem vestida, com um enigmático olhar de um misto de severidade e doçura.
Ao mesmo tempo em que iniciaram as visões, também o seu espírito se tornara enfraquecido. Pouco a pouco o seu olhar foi perdendo aquela amabilidade que lhe fora peculiar. Dúvidas perturbavam o seu coração, levando-o, gradativamente, a questionar os rumos que tinha dado à sua vida. Seu ministério foi lhe parecendo sem sentido. Algo faltava. Mas a natureza deste algo lhe escapava.
Foi quando lembrou do seu pai, o missionário que o acolhera. Agora, já bastante idoso, continuava na direção daquele orfanato, cuidando dos muitos filhos, seu orgulho e feliz missão que recebera. Pacule foi ter com seu padrasto e contou-lhe da perturbação do seu coração. Ouviu então toda a vetusta sabedoria. Palavras de conforto e conselhos paternais saíram daquela já trêmula voz. Pacule deveria orar ao Senhor, jejuar e meditar sobre determinada passagem bíblica.
Cumpriu à risca toda a paternal sabedoria conselheira. Mas, desta vez, nada mudara. Ou, segundo lhe pareceu, as visões aumentavam de frequencia. Agora, a mulher da sua visão fazia-lhe visitas diárias.
Novamente, foi ter com o pai. Dessa vez, aproveitando a presença de outros pastores, foi sugerida uma sessão de exorcismo. Discreta, já que se tratava do exorcismo que tinha como paciente um pastor. Às portas fechadas, a sessão foi efetuada. Duas horas de comandos de expulsão, unções com óleos consagrados, imposição de mãos e toda sorte de ritos adotados. Terminada a sessão, foi-lhe transmitida a certeza de que as visões não mais o perturbariam. Porém, qual não foi a sua surpresa, poucos minutos após o exorcismo, novamente aparece-lhe a mulher das suas visões. E todo o dia seguinte permeou seus olhos de ossos e oferendas.
Diante disso, seu padrasto o aconselhou a se afastar temporariamente do ministério. Umas férias prolongadas o fariam bem. O conselho de pastores aprovariam aquela medida sem a subtração da sua prebenda.
Foi o que fez Pacule. Foi para casa, para o cuidado de sua mulher e seus dois filhos já crescidos, em busca de descanso para a sua alma perturbada.
As visões, no entanto, não o deixaram. Cotidianamente, cada vez mais frequentes, faziam com que seu coração sofresse mais e mais. O mesmo homem que dara tanto alento aos seus fiéis, cujas palavras fora guia daquele povo que lhe confiava as amarguras e sofrimentos, agora sofria intensamente e não via uma saída possível.
Um dia, sua esposa comentou o fato com uma amiga que conhecera na feira. Ela, então, sugeriu que ele consultasse o curandeiro daquele lugar. Pacule, porém, negou veementemente. Aprendera que o curandeirismo era abominação aos olhos de Deus, ora essa! “Nunca faria isso”, foi a sua resposta seca.
Mas a dor se intensificava mais a cada dia, juntamente com as visões. E, num átimo de desespero e incapacidade de visualizar o fim daquela dor, foi ter com o curandeiro.
Apesar de nunca ter estado num ambiente daquele, sentiu uma estranha familiaridade com a casa do curandeiro e todos os ornamentos e oferendas, filas de espera, búzios, raízes e etc. Parecera que já estivera numa lugar como aquele antes. Só não se lembrava onde e quando.
O curandeiro pediu que sentasse e contasse o que lhe pertubava o coração. Após ouvir silenciosamente, o homem ajuntou nas mãos um punhado de búzios e jogou-os sobre a mesa. Olhou, então, atentamente, para a disposição de cada peça derrubada. Moveu algumas, olhou novamente. Aqueles segundos pareciam horas a Pacule. Começava a se arrepender de ter ido ali. Seu coração batia acelerado, num misto de ansiedade pelo que iria ouvir e irritabilidade por estar naquela sala.
Então, o curandeiro começou a falar. Disse que aquelas visões eram sinais de um chamado. Que aquela mulher era a mãe de Pacule, que ele não mais lembrava o semblante, mas que vinha, agora, lhe dizer algo muito importante. Ele tinha uma responsabilidade para com a comunidade que a sua mãe deixara, com a morte, desgarrada. Aquelas pessoas precisavam de um guia espiritual. E este guia era ele. Ele, Pacule, deveria voltar à vila onde nascera. Não mais, porém, como pastor metodista. Ele deveria se tornar um curandeiro, como ela fora. Foi para isso que ele nascera. Era a sua missão.
As palavras penetravam seu ser como navalhas afiadas cortando a carne macia. O seu rosto, estampa do choque. Pacule se vê sentado naquela sala, sem nenhuma reação possível a ser tomada. Os pensamentos vinham e iam tão rapidamente que ele não conseguia se deter em nenhum. Ele, que sempre soubera todas as respostas, que sempre apontara o caminho, naquele momento tinha a visão turva. Apenas a imobilidade do seu corpo estupefado.
Assim ficou por longos segundos, até que foi informado que poderia se retirar. Outras pessoas aguardavam a vez. Vagarosamente, como que convertendo toda aquela informação em chumbo que trazia às costas, ele se retirou. Um gosto amargo na boca seca, um tremor que percorria todo o corpo e os olhos perturbados eram companheiros de viagem de Pacule na sua volta para casa.

1 comment:

  1. Marcello (importante é que Cirsto brilhe e não eu)October 1, 2009 at 7:35 PM

    Meu irmãozinho, quando falei que eu ia ser seu empresario, falei a verdade. Você esta um otimo escritor, esta fazendo ate suspense com a história ..... Aguardo a continuação.... Só espero que o pastro não vire curandeiro, más pelo contrario se torne um pastor maior ainda...... que a Palavra de Deus seja sempre proclamada.

    Abraços

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