Era o ano de 1989. Ela estava sentada debaixo da mangueira. Descascava uma manga vagarosamente. “Esse ano as mangueiras não deram quase nada”, pensou, enquanto descansava daquele dia difícil de cuidado da machamba nos fundos de sua casa. Foi o dia em que colhera em boa parte dos canteiros. Amanhã deveria levar os produtos para a feira, para vender ou trocar por algum outro produto com outras pessoas da vila.
Sua mente voava eufórica. Lembrava daquele dia, mês passado, quando foi com seu namorado para o riacho, banhar. Ele era o mais lindo da vila, ela achava. Foram naquele dia, depois que ele sorriu para ela e disse que queria namora-la. “Ndinokuda, mama”, ele dissera. Isso fora suficiente para ela descer com ele o rio. Lá, eles fizeram sexo durante ela nem lembra quanto tempo. Ah, como ele gostara. Bendita hora em que sua mãe, cumprindo a tradição agora quase esquecida ou deixada de lado, a preparara para o futuro marido. Fizera a matuna, numa cerimônia de preparação da sua vagina com folhas de uma planta sagrada, que aumentava os pequenos lábios, melhorando o desempenho sexual. Ela conseguia, então, controlar a penetração do homem e o orgão masculino só saia da vagina quando ela queria, quando ela tivesse terminado, quando ela alcançasse o prazer. Sim, ela vira a expressão de contentamento no rosto dele. Sabia que ele voltaria a ter com ela. Quem sabe até a pediria em casamento. Era isso que ela queria. Já estava na idade, tinha 17 anos. Se não casasse logo, em pouco tempo a vila começaria a se perguntar se ela não casaria. Era o seu maior medo.
Ainda mais agora, que ficara grávida. Sentia que algo mudara dentro de si desde que estivera no riacho com o namorado. Carregava uma vida dentro de si. Mas agora sentia medo. E se ele não a aceitasse como esposa? E se tivesse que criar o filho sozinha?
De repente, pensou que traria ao mundo mais uma vida. Sentiu um frio descendo pela espinha. Uma vida, um filho! Sentiu uma alegria e uma dor. Seria mãe, aquilo para o qual nascera para ser, que sentira como sendo desde que sangrara a primeira vez. Desde então, os deuses a lembravam, todo mês, do seu papel naquela vila. Ela se sentia em unidade com a terra que cultivava. Faria nascer uma vida, como as plantas que regava nasciam da terra. Sabia que seus seios iriam mudar, para amamentar. Alimentar, como também faziam as plantas dadas pela Mãe Terra aos homens. Seu pensamento voava longe, voava como o falcão-cuco, tão comum naquela região. Sua mãe sempre a repreendia, dizendo que ela pensava demais. Não era papel da mulher pensar. Mulher tinha que aprender a cultivar a machamba, a passar troco na feira e a cuidar dos filhos.
Mas ela pensava muito mesmo e não conseguia parar. Agora, pensava no mundo que ia receber o seu filho. A dor, o trabalho, a seca, a guerra civil. Nem se lembrava mais quando ou porque a guerra civil começara. Desde a sua infância, as notícias da morte de algum vizinho, parente ou conhecido eram constantes. Era normal, como comprar o pão na feira ou regar a machamba. Era cotidiano.
Ela nem pensava no fim da guerra. Para ela, a guerra sempre existiu e sempre existiria. Era como aquela casa, onde ela morou desde que nasceu, com sua mãe, seu irmão, sua irmã. Depois, veio o cunhado e, logo depois, a sobrinha. O cunhado não deveria ter vindo morar na casa. Segundo o costume, ele deveria construir sua própria casa ou levar a esposa para a casa dos pais dele. Mas ele era orfão e desempregado. A mãe dela foi deixando, com o compromisso do genro de que sairia dali assim que pudesse. Então, veio a sobrinha.
Ah, como ela adorava a sobrinha. Viera para alegrar aquela casa. Trouxe aquela alegria que a fazia esquecer da dor e secura daquela vida. Sorria, brincava, chorava de madrugada. Acordava a todos na casa, aos berros. Em poucos minutos, o sobressalto dava lugar a carinhos e brincadeiras, vozes suaves de acalento. Como ela gostava de carregar a sobrinha nas costas, amarrada na capulana...
Sim, a vinda da sobrinha mudou um pouco aquela rotina. Mas, depois, tudo voltou a parecer o mesmo: a família, a machamba, a feira, a guerra.
E nada lhe parecia mais cotidiano do que a guerra civil. Não custou muito para aprender a viver com a guerra. Não mais estranhava as invasões de soldados à sua vila. Às vezes, uma família qualquer que costumava encontrar na feira, vendendo produtos da machamba, desaparecia. Ela aprendera a não mais perguntar. Com o tempo, aprendera a não sentir saudades. Outras vezes – muitas vezes – tinha visto pequenas fábricas e comercios da vila queimando, destruídos. Todos sabiam que tinham sido os revoltosos. Não permitiam o crescimento da vila. De nenhuma vila por onde passavam. Assim, com o tempo, todos eles aprenderam a não construírem grandes casas, a não estocarem comida ou mesmo construirem fábricas de farinha ou tijolos. Todos faziam os tijolos no próprio quintal, comiam o produto da própria machamba e apenas trocava entre si o essencial, na pequena feira montada do centro da vila. Nada que pudesse chamar a atenção dos revoltosos.
Os revoltosos também não aceitavam escolas. Tinham queimado a pequena escola da vila, que os portugueses construíram e onde ela estudara. Agora, estudava na casa do professor da vila, que lhe falava sobre países distantes, sobre contas com números e que mandava ler livros que ele mantinha escondido dos revoltosos. Mas ela não gostava dos números. Preferia as aulas onde ele falava das terras distantes. Isso a fazia sonhar, imaginava-se vivendo naqueles reinos e países, com aquelas pessoas diferentes e jeitos de ser todo especiais. Ela não dizia, mas queria ter nascido muzungu. Todos os muzungus são muito ricos e podem ir onde quiserem. Todos os muzungus que vira não tinham aquele olhar de dor, tão comum nos olhos da sua vila. Um dia, na capital, vira uma televisão. Era um caixa luminosa, onde se passava uma história de muzungu. Todos bem vestidos, sorridentes, gordos e felizes. Era uma história de amor. E como eles amavam bonito, pensou ela. Um dia, quem sabe, iria perguntar ao feiticeiro se era possível alguma poção para faze-la muzungu.
A guerra também lhe ensinara a evitar lugares onde existiam minas terrestres. Sempre ouvia de pessoas vitimadas por alguma mina, em determinado lugar. Quase sempre morriam. Para outras, no entanto, os deuses olhavam de bom grado. Perdiam uma perna, ou as duas, mas viviam. Sorte, proteção dos deuses. Quanto ao terreno onde isso acontecia, não precisavam dizer mais nada. Ela, como todos na vila, sabia que não devia andar mais por aquele lugar. E, com o passar do tempo, poucos eram os lugares por onde ela andava. Apenas nos lugares seguros dentro da vila, da escola para casa, de casa para feira e para casa.
Tinha ouvido do cunhado que aquela era uma região que corria maior risco, porque era próxima ao Malawi. Era lá que os revoltosos tinham uma base, com o apoio do governo daquele país. Ela não entendia muito sobre a guerra. Ouvia muitas coisas, todos os dias. Aprendera a repetir os comentarios, as opiniões e as esperanças. Alguns, mais velhos, tinham esperança de que a guerra acabasse. Falavam de um tempo em que toda aquela região era um grande e poderoso império, o Império do Grande Zimbábwe. Via nos olhos destes contadores do passado uma melancolia cheia de esperança quanto ao futuro. Quanto a ela, apenas conhecera a guerra. Mas aqueles olhares a contagiava. E ela tentava imaginar sua vida sem a guerra. Mas não conseguia. Não conhecera nenhum mundo sem guerra. Nunca deixara a sua vila, exceto aquela vez em que fora à capital. Mas a guerra também estava lá. Em todo o seu mundo conhecido havia a guerra. E, com ela, toda a dor, choro, perdas e funerais.
Antes, vieram os portugueses. Dominaram, colonizaram, levaram escravos, exploraram a terra, exploraram as pessoas. Depois, uma euforia. Palavras de ordem, expectativa. Independência. Seu país passara a se chamar Moçambique. Ganhara bandeira, hino, presidente, cidadania. E ganhara a guerra. A guerra viera no mesmo comboio que trouxera a independência.
Os mais velhos diziam que os deuses abandonara aquela terra. Os feiticeiros explicavam que, antes, os homens é que haviam abandonado os deuses. Aceitaram a religião dos brancos, a religião muzungu. Até um rei de um reino vizinho tinha se batizado na religião dos brancos. Pecado. Desobediência às leis do seu povo, dadas pelos deuses aos feiticeiros.
Agora, sofriam a dor do abandono. Os deuses não olhavam mais pra eles. As secas eram maiores, os rios demoravam encher, os homens morriam como formigas pisoteadas num formigueiro. E eles aguardavam um tempo onde os deuses restaurariam as glórias dos tempos do grande império.
De repente, ela ouviu um barulho do outro lado do quintal. Seus pensamentos se interromperam bruscamente quando notou que alguém derrubara a cerca de bambu e adentrava os domínios de sua casa. Seu coração tomou um ritmo descompassado, acelerado. Suas pernas tremeram. Largou, então, suavemente, o caroço de manga que ainda roía e se voltou, muito cautelosamente, na direção daquele som. Ouviu uma voz grave, agressiva, que não lhe pareceu familiar. Dava ordens de comando num tom baixo e assustador.
Muito devagar, ela olhou por entre o arbusto que impedia a total visualização do invasor. Para sua sorte, essa posição impedia os invasores de ve-la. Pôde acompanhar os movimentos daqueles homens. Reconheceu a roupa que usavam, a roupa dos revoltosos. “Oh não, os revoltosos não!”, gemeu dentro de si.
Seu coração era todo gelo e medo. Suava frio, imaginando que só poderia vir o pior daquele momento.
Eles se achegaram ao redor da casa e chutaram a porta que, frágil, se partiu em duas no chão da cozinha, num forte estrondo. Gritos foram ouvidos de dentro da casa. Os homens, num relance, haviam entrado. Secos golpes são ouvidos do lado de fora.
Ela volta à sua posição anterior, atrás do tronco da mangueira. As batidas do seu coração a traem. É o som que mais ouve naquele momento. Parece querer lhe sair pela garganta. Traduzem todo o pânico que sente.
Sua mente trabalha desesperadamente. Tenta descobrir o que fazer. Que ação tomar. Correr na direção de impedir aquela agressão? Fugir? Ficar?
De repente, como que por uma luz vinda dos deuses, ela visualiza um buraco na cerca. Muito perto de onde ela estava, poderia passar por ali sem ser notada. Seu instinto de sobrevivência a impulsiona naquela direção. Uma vez segura, pensaria melhor no que fazer. Foi, então, silenciosamente, para aquela fenda, seu lugar de salvação. Com muito cuidado, atravessou aquele espaço e passou a olhar o que desenrolava dentro do quintal.
No instante em que volta o seu olhar ao lugar de onde viera, os homens estão levando sua família para fora. Sua mãe é arrastada pelo cabelo por um homem que parecia ser o comandante daquele grupo. Em seguida, vem outro guerrilheiro segurando seu cunhado pelo pescoço e o joga no chão de terra, violentamente. Atrás, vem outro homem segurando pelo braço a irmã com a sobrinha nas costas. Mais 2 outros homens saem da casa e andam pelo quintal, para ter certeza que ninguém mais faltava àquela reunião macabra. Todos eles portam rifles, que carregam a tiracolo, e armas pequenas e facas nas cinturas. Suas roupas demonstram estarem a muito tempo no mato, combatendo nas guerrilhas.
Ela olha, assustada, entre as brechas deixadas pelos bambus. Tenta entender o que se passa. Um turbilhão confuso de pensamentos passam por sua mente. Seu corpo, no entanto, não mostra a mesma mobilidade. As pernas trêmulas pesam como chumbo. Não se movem, estáticas. Um gosto amargo na boca. As mãos a tremerem, suadas e igualmente pesadas. Apenas os olhos, em pânico, esboçam lágrimas que descem pelo rosto, retrato terrificante.
Seus ouvidos não conseguem captar os sons advindos do sinistro. Mesmos gritados, audíveis, são bloqueados pelo pavor daquela testemunha. Ela apenas percebe os bruscos movimentos dos guerrilheiros que acusam, golpeiam e machucam aquelas carnes estendidas no chão.
De repente, um dos homens golpeia a cabeça da irmã, que já segurava a criança em seus braços. O marido esboça uma reação instintiva de proteção. Levanta a mão direita, como que para alcançar aquela cena que se desenrola a poucos centímetros dele. O soldado que ataca, então, saca a arma e desfere o primeiro golpe, que atinge o coração do homem. Suficiente. O corpo tomba, imóvel. Um outro soldado alveja o corpo já morto. Tiro inútil, apenas vontade de participação naquele ato cruel.
A esposa grita um pranto desesperado. Um soldado arranca a criança das suas mãos. O pranto se intensifica. O homem coloca a criança num pilão que se encontra próximo à porta destruída. Entrega, então, o pau do pilão à mãe e ordena: “Acerta a cabeça dele!”. Da distância, a testemunha geme e vira-se. Não poderia ver aquela cena. Não tem mais forças pra chorar. Apenas se segura de joelhos no chão, enquanto volta o olhar para longe daquela cena agriotímica.
A mãe se recusa a acertar a cabeça da criança. Seu pranto adquire um tom mais assustador. A dor de ter de matar sua filha seria maior que qualquer dor de morte. Seu corpo se encolhe no chão, recusando-se ao movimento, enquanto recebe golpes das pesadas botas daqueles soldados em todo o seu corpo. Mas, quanto mais fortes as ordens e golpes, mais rendido ao chão aquele corpo tomba. Então, os homens desistem da crueldade. Num tiro de misericórdia, dão cabo ao sofrimento e à vida daquela mãe. Um outro tiro assassina a criança que chorava dentro do pilão. Um ultimo estampido vitima a matriarca daquele lar.
No ar ainda se ouvem o eco dos tiros. As outras casas da vila, ao som do primeiro tiro, deram por fechadas todas as portas e janelas. Uma áurea de pavor e apreensão toma conta daquele povoado. Todos pedem aos deuses que aquele momento termine.
Os guerrilheiros dão por encerrado o seu trabalho. Começam a se retirar do local pelo mesmo lugar de entrada, não sem antes pegarem na casa os mantimentos e água que garantiriam mais um dia de jornada, aqueles mesmos mantimentos que deveriam ir para a feira no dia seguinte. Comentam os soldados da sorte de terem encontrado tanta comida embalada, como que esperando por eles. Seus olhares, carregados de ódio e impiedade, procuram uma outra vila para um novo palco do terror que impõem.
Atrás da cerca de bambu, um corpo jaz desmaiado, já sem forças para chorar ou assistir a cena que se passa.
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