"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Wednesday, March 30, 2016

Heidegger e o “Cérebro de Putin”


O cientista político russo Aleksandr Dugin é conhecido como o “Cérebro de Putin”, uma vez que os seus escritos e palestras servem como sustentáculo filosófico e ideológico ao “neo-eurasianismo” e as iniciativas da política internacional expansionista de Putin. Dugin cita Heidegger como a sua maior fonte de inspiração e se considera um estudioso do filósofo alemão. Em 2014, ele publicou Martin Heidegger: A Filosofia de Outro Começo, uma obra sobre a filosofia de Heidegger. Eu não li o livro mas estudei a Quarta Teoria Política, onde Dugin traduz os conceitos centrais de Heidegger em um manifesto político. Ambos foram publicados em inglês pela editora supremacista Arktos.

A influência de Heidegger nos departamentos de filosofia das universidades americanas e européias diminuiu consideravelmente desde o lançamento, há dois anos atrás, do seu Schwarze Hefte (Cadernos Negros), que mostra claramente que o anti-semitismo era a base do seu pensamento. Pesquisadores já percebem agora um encadeamento deste profundo anti-semitismo desde o seu Ser e Tempo (1927) até a sua adesão ao Nacional Socialismo (Heidegger permaneceu um membro do Partido Nazista até 1945). E é precisamente este período da carreira de Heidegger que atrai Aleksandr Dugin. O ódio profundo a democracia liberal é o fundamento da Quarta Teoria Política de Dugin. Heidegger via a democracia liberal como uma criação da “Comunidade Judaica Mundial” – antagônica ao autêntico Dasein humano – que controlava os Estados Unidos, que por sua vez a pretendia impor na Europa, destruindo a Kultur européia. Dugin constrói uma hierarquia das ideologias do mundo – com o liberalismo em último lugar – que deveriam ser substituídas por uma nova forma de totalitarismo:

"A Quarta Teoria Política… é construída sob o imperativo da superação da modernidade e das três ideologias políticas, nesta ordem (e esta ordem é extremamente importante): (1) liberalismo, (2) comunismo, (3) fascismo (nacionalismo). O objeto desta teoria, numa versão simplificada, é o conceito de narod, com significado quase similar ao ‘Volk’ ou ’povo’, mas no sentido de ‘gente’ ou ‘pessoas’, e não de ‘massa’”.

Na teoria de Dugin, portanto, o fascismo está num nível superior ao liberalismo. De fato, tanto o fascismo quanto o comunismo são componentes do Admirável Mundo Novo de Dugin: o comunismo, por seu anti-capitalismo e coletivismo, e o fascismo/nazismo, por seu anti-racionalismo. Esta nova ordem, que Dugin chama de “Terceira Roma – Terceiro Reich – Terceira Internacional, requer:

"o desprezo aos preconceitos anti-comunistas e anti-fascistas. Estes preconceitos são ferramentas nas mãos dos liberais e globalistas, com as quais mantêm os seus inimigos divididos. Assim, devemos rejeitar com veemência o anti-comunismo e o anti-fascismo. Ambos são ferramentas contra-revolucionárias nas mãos da elite global liberal”.

A visão de Dugin sobre a nova Eurásia é a de uma confederação de estados anti-liberais – cada um com a sua própria ética e governo totalitário nacional exclusivo – unidos sob a proteção da Mãe Rússia:

Ele (Dugin) vê a Rússia como excepcionalmente posicionada para levar a cabo o confronto “metapolítico” entre o Oriente e o Ocidente preconizado por Heidegger a fim de corrigir os erros do racionalismo ocidental – apesar de o próprio Heidegger nunca ter colocado este plano em prática. A Rússia então deveria encarnar a ‘quarta teoria política’, corrigindo as falhas das três teorias do Ocidente moderno: liberalismo, comunismo e fascismo. Em termos políticos concretos, isto significaria um império russo que supostamente iria respeitar as diversas identidades étnicas dos povos cativos sobre os quais governaria. Ou seja, ela respeitaria estas identidades protegendo-as contra a homogeneização, as forças niveladoras do universalismo atlanticista, à custa de coloca-las em suas devidas hierarquias, submissas a hegemonia russa. Este império russo se aliaria com os demais inimigos do universalismo ocidental para se oporem as potências ateístas, plutocráticas e materialistas do Atlântico, comandadas pelos Estados Unidos e por seu suposto representante, a União Européia.

A Rússia, sob Putin e com o apoio da Igreja Ortodoxa Russa, está vivendo um ‘reavivamento espiritual’ semelhante ao "geistige Erneuerung" que Heidegger viu no Nacional Socialismo, sobre o qual escreveu numa carta de 1947 a Herbert Marcuse:

“Zu 1933: ich erwartete vom Nationalsozialismus eine geistige Erneuerung des ganzen Lebens, eine Aussöhnung sozialer Gegensätze und eine Rettung des abendländischen Daseins”.

Mas, para Dugin, este reavivamento só será bem-sucedido por meio de um confronto global envolvendo a Rússia e os proponentes da democracia liberal (os Estados Unidos). Dugin divide os seus adversários americanos entre “gaviões” e “pombas”, dois lados da mesma moeda: como defensores da democracia liberal, eles representam um grande perigo a soberania da Rússia. Dugin usa o termo Enantiodromia para ilustrar como a democracia liberal americana se esgotou e isto resultará num conflito com a Rússia:

"A enantiodromia termina assim que um dos lados começa a dominar. Quando os cesaristas perceberam que a hegemonia americana e o liberalismo conduzirão inevitavelmente ao rebaixamento da Rússia, e que disto independe quem prevalecerá nos Estados Unidos – se os gaviões ou as pombas, eles (os cesaristas) então se voltaram a zona ideológica anti-liberal e se prepararam para a guerra; uma guerra militar real. Porque eles sabiam que mais cedo ou mais tarde a guerra seria imposta sobre eles caso insistissem em soberania”.


Felizmente, Putin é um pragmático e não segue os conselhos militares de Aleksandr Dugin. Quanta influência tem Dugin sobre o Kremlin? Não sabemos. Talvez ele seja apenas o bobo da corte que entretém os líderes da Igreja Ortodoxa. Por outro lado, não há dúvidas de que a ideologia e as fantasias político-teológicas de Dugin têm influenciado um grande número de pessoas, dentro e fora da Rússia. De acordo com Anton Barbashin e Hannah Thoburn, existem mais de 56 filiais da União da Juventude Eurasiana de Dugin: 47 na Rússia e nove em outros países. O que também está evidente é que os escritos de Martin Heidegger continuarão a inspirar os inimigos da democracia liberal e a Open Society pelas próximas décadas. 

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