Enquanto
saía da faculdade, pensava no quanto o novo professor de Sociologia
o deixara profundamente inspirado. "Parece que ele tem uma
biblioteca na cabeça, cita até a página de cor", pensou. Se
sentia realizado por ter escolhido o curso de Ciências Sociais.
Finalmente havia encontrado algo que daria sentido a sua vida. Algo
com o que poderia realmente fazer a diferença, mudar o mundo. E,
como tinha acabado de ouvir na aula, a revolução deveria começar
por aquelas pessoas da sua turma da faculdade, a geração
consciente. "Somos os profetas de uma nova era". Profeta
não, que esta palavra tem uma conotação religiosa e, como bem
aprendeu, religião é o ópio do povo.
Esses
pensamentos sempre o remetia a um sentimento que era como uma espécie
de desforra para com a sua família, principalmente o seu primo.
Nasceu e cresceu numa pequena cidade antes de vir morar no alojamento
estudantil da faculdade, na capital. Sua família era grande, todos
os primos moravam na mesma rua. Este, agora, fazia engenharia na
mesma universidade. Não se falavam muito, afinal sempre foram muito
diferentes. O primo vivia cercado de garotas, era do tipo atlético,
gostava de futebol. Ele, no entanto, sempre fora tímido, quase não
saia de casa. Seu passatempo preferido era ler O Mundo de Sofia. Era
certamente um tipo intelectual e, por isso, incompreendido inclusive
pela própria mãe, que sempre dizia para ele sair com o primo e
conhecer as garotas da cidade.
De
família muito tradicional e religiosa, importante na cidade, ele
agora percebia o quanto eram retrógrados. Agora, que finalmente
pensava com a própria cabeça. Os velhos costumes familiares, a
igreja, tudo aquilo tinha ficado para trás. Sentia uma espécie de
desforra quando percebia que aquele outro estava estudando apenas
para o mercado de trabalho. O primo era mais uma vítima da educação
neoliberal, formando mão-de-obra para o capital. Mas ele não!
Estava no meio de pessoas com uma visão diferente do mundo, voltada
para o social, para as minorias, para a libertação do homem.
Fazer
parte desta missão o enchia de um gozo até então desconhecido. Seu
coração acelerava e sua mente fluía em idéias sem fim. "Dá
até pra escrever um livro". Lembrou da euforia que sentiu a
cada aforismo quando, naquela semana, lera Nietzsche e se
identificara com o Super-Homem. O alemão tinha sido como ele, um
jovem tímido que terminou por marcar a cultura ocidental. Era este o
futuro que o aguardava.
Seus
pensamentos foram interrompidos por alguém que se aproximava do
ponto de ônibus onde estava:
-
Ô moço, o 317 já passou?, escutou.
-
Ainda não, é este que estou esperando.
-
Bão.
“Que
simpatia”, pensou. O senhor tinha um olhar cansado, mas divertido.
Usava roupas sujas de cimento e tinta, com uma mochila meio rasgada a
tiracolo. Esse era o verdadeiro proletário de quem falava Marx no
Manifesto Comunista. O proletário de quem falava o seu professor.
“Serão pessoas como ele que derrubarão o sistema e criarão um
mundo mais justo”. A euforia interrompida retornou. Precisava
conversar com aquele proletário, aprender com ele.
-
Trabalhou até mais tarde hoje?
-
Sim sinhô, obra atrasada, sabe...
-
O que o senhor faz?
-
Sou servente.
-
Muito admirável essa sua vida e seu esforço. Sabe que eu estou na
faculdade e estudo bastante sobre o papel dos proletários, né,
trabalhadores como o senhor que são a base de sustentação da
sociedade, trabalhando muitas horas por dia para garantir o sustento
da família numa sociedade opressora e capitalista que te tira a
mais-valia, te deixando com apenas uma parte pequena do valor daquilo
que o senhor… Qual o nome do senhor?, perguntou enquanto entravam
no ônibus que chegara.
-
Valdir.
-
Seo Valdir! - exclamou, enquanto se sentava do outro lado do corredor
para poder continuar conversando sem precisar encostar em Seo Valdir
e terminar por sujar a roupa de cimento ou tinta.
-
Pois então, seo Valdir, a sua vida é fonte de inspiração para a
gente lá na faculdade… Um filósofo que estudamos, chamado Marx,
disse que a revolução que vai implantar um mundo melhor vai comecar
por pessoas como o senhor.
-
Max?
-
Sim, Marx. Quando vocês perceberem que estão sendo roubados pelos
patrões, que vocês são a base de sustentação da sociedade e os
únicos que fazem o motor da economia girar, a revolução vai
finalmente poder acontecer.
-
É?
-
Sim!
Continuou
a falar sobre como ele mesmo era parte de uma elite intelectual que
deveria guiar os trabalhadores para a criação de uma sociedade sem
classes. Falou de Revolução Industrial, do DCE, de Paulo Freire, de
desconstrução, de opressão e de libertação. Ali começava a
concientização da classe trabalhadora de que falou o seu professor.
Foi
se levantando enquanto o ônibus encostava no ponto em que ia descer.
De longe avistou o Zanzi Bar, onde os amigos do DCE o aguardavam para
curtir uma banda cover d'Os Mutantes. Se despediu do Seo Valdir com
um sorriso e um aceno. Ainda sorriram um para o outro quando a porta
se abriu. Seu coração se rejubilava.
"Moço
inteligente", pensou Sêo Valdir. Se ajeitou, então, no
assento, abriu a mochila e pegou uma Bíblia surrada. Precisava ler
pelo menos dois capítulos até a hora de descer. Tinha feito um
compromisso na igreja de ler a Bíblia toda em um ano. Sua mulher
sempre cobrava: “promessa feita é promessa cumprida”. No último
mês tinha atrasado muito a leitura, por causa das horas extras no
trabalho. O engenheiro da construção também estava no seu pé.
Estava cansado, mas feliz porque neste mês poderia ajudar com um
pouco mais a filha récem-casada. Construir família não era fácil.
“O
temor do Senhor é o princípio da sabedoria”, começou a ler.