"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Sunday, October 18, 2020

Não é porque eu vejo primeiro que eu vejo demais!

Em abril, eu previ que Bolsonaro não teria outra alternativa senão participar do pleito municipal paulistano logo no primeiro turno (ao contrário do que ele dizia então) e, ao fazê-lo, Russomano seria a escolha mais coerente. Mas essa servidão presidencial às circunstâncias tem raízes muito anteriores, senão vejamos.


A sinuca de bico presidencial começou a ser desenhada quando os “líderes” aloprados da direita convocaram as manifestações de abril e maio de 2019, a fim de hostilizar o Congresso e o STF. Estes líderes receberam a promessa de que a destruição destas instituições faria surgir um novo modelo de governo, um tal “controle popular das ruas” que por si só bastaria ao presidente para conduzir o Brasil a sua verdadeira vocação. (Na verdade, não houve consenso entre os líderes da direita sobre o “escathon” das ruas. Alguns defendiam, por exemplo, que o fim das instituições traria o retorno da monarquia, e que o governo Bolsonaro seria um “governo de transição”). O único consenso era que a destruição do Congresso e do STF seria seguida de uma terra vindoura onde “manaria leite e mel”.


Pois bem. O prometido “governo das ruas” nunca chegou, mas o clima de insanidade e histeria criado conseguiu produzir duas coisas: a criação de uma CPMI das Fakes News para investigar o uso de verbas públicas no financiamento de ataques a oposição (uma espécie de camisa-de-força para os revolucionários de direita), e a destruição da coalizão congressual governista que elegeu Maia e Alcolumbre, apoiados pelo presidente Bolsonaro, em um acordo que previa que as pautas econômicas do governo seriam aprovadas no primeiro biênio (Maia pautou e fez aprovar, por exemplo, a reforma da previdência que nem FHC, Lula ou o mensalão conseguiram fazer). Deputados bolsonaristas que estiveram na casa de Rodrigo Maia quando da realização deste acordo foram às ruas, hipocritamente, “denunciar Maia e o Centrão”.


Isolado, mal assessorado e sem o apoio do Centrão, Bolsonaro tentou construir novas alianças, e o fez, coincidentemente, com os mesmos partidos que aceitaram temporariamente a Dilma rompida com o PMDB: PSD, PP e PL. Jefferson, que naquele momento parecia agir de forma oportunista (o futuro mostrou que tinha virado um direiteca aloprado também), deu um urro de leão conservador e também encostou no presidente. Para Bolsonaro, no entanto, isso ainda não era uma coalizão suficiente, além de que todos os líderes destes partidos, pela proximidade com o presidente, começaram a ter os seus esqueletos tirados dos armários…


Eu também cantei esta bola. O único grupo político que ganhava espaço com toda a loucura direitista (e a completa desarticulação da esquerda) era os evangélicos (e o braço político do crime organizado, mas este agora não vem ao caso). Bolsonaro acabou por filiar os dois filhos cariocas no Republicanos e já sinalizou apoio a Crivela ali mesmo, em março/abril.


Naquele momento, o projeto político da direita bolsonarista já havia sido destruído pelo racha irresponsável com o PSL e pela farsa da criação do Lambança Pelo Brasil, a ideia “brilhante” de fundação de um “partido cientificamente conservador” (cuja definição nunca foi explicada), onde os maiores intelectuais conservadores e os melhores especialistas em direito eleitoral construíram uma aliança para, juntos, esquecer de checar o prazo procedimental de criação de um partido... 


Uma vez no colo dos evangélicos, Bolsonaro articula a montagem da chapa do Republicanos em São Paulo, trazendo um vice do PTB para compor com Russomano. O candidato, que começava a desidratar, volta a crescer timidamente nas pesquisas, mantendo-se abaixo dos 30%. Acontece que os eleitores que Bolsonaro “transfere” são de perfis muito parecidos com os eleitores de Russomano (jovens de periferia, baixa escolaridade) e essa intersecção pode ter apenas o efeito de consolidar os números de Russomano do início do ano.  


Mas, diferentemente do Rio, onde Crivela está liquidado (quase 60% de uma rejeição cristalizada desde 2019 e um marketing que tem criado dissonância cognitiva no eleitor), em São Paulo existe uma chance de vitória para Russonaro. Historicamente (de 2000 a 2016), um prefeito que busca a reeleição e tem a avaliação de Bruno Covas (28% de ótimo e bom), tem 12% de chance de vitória (para se ter uma ideia, nunca um governador com estes números tão baixos foi reeleito). Para vencer, Bruno precisa acentuar a rejeição de Russonaro no segundo turno, fazendo uma campanha negativa.


Veja que o ingresso de Bolsonaro no pleito alterou algo importante. Antes, Bruno pretendia repetir o fenômeno de Doria em 2016: a estratégia era esfriar o processo político para que o alto número das abstenções garantisse uma vitória no primeiro turno. Para isso, o COVID caiu como uma luva, já que a quarentena manteria candidatos e eleitores em casa o máximo de tempo possível, e uma campanha nas redes nunca teria a penetração e o engajamento suficientes.


Bolsonaro pode conseguir que um candidato sem consenso partidário, sem recursos e sem trabalho de base seja levado ao segundo turno. E, a julgar pelos números de Bruno, vai ser uma disputa acirrada. É como uma luta de dois japoneses para ver quem tem a piroquinha maior. Bruno tem muita grana para o pleito, mas sua avaliação é baixa e, para complicar, o PCC proibiu o PSDB de entrar nas comunidades. Russomano tem os 15% de transferência de Bolsonaro e uma baixa rejeição, mas é só. Em qualquer outra circunstância, ambos estariam em maus lençóis.


Mas a pergunta é: uma administração Russomano vai ser bolsonarista ou só servirá para “destruir os planos do Doria”? (Afinal, por incrível que pareça, Bolsonaro tem mesmo preocupação com o projeto presidencial de Doria. Nenhum assessor do presidente consegue perceber que Doria não será candidato a presidente e informar isso ao “Jair”. Imagine que o Doria puxe uma pesquisa em abril de 2022 e se veja ali com 5% de intenção de votos para presidente e 30% para governador, ele vem a presidente ou a reeleição?)


Se eu tivesse que cravar, diria que, se eleito, Russomano virará as costas para o presidente na primeira oportunidade. E não fará isso por maldade, necessariamente, mas porque entrou num acordo mal costurado com um presidente totalmente desgarrado. Sem contar que os efeitos das eleições municipais serão terríveis para o presidente e ele estará muito enfraquecido para cobrar qualquer coisa de Russomano. Mas isso é assunto para outro momento…

Friday, June 5, 2020

São Paulo, a Sinfonia da Metrópole 2

SÃO PAULO, A SINFONIA DA METRÓPOLE 2
(Para ler ouvindo a valsa Arranha-Céu, na voz de Silvio Caldas)

“Intervenção militar com Bolsonaro no poder!”, gritava um amontado de gente ao redor de um carro de som na Paulista, enquanto eu atravessava a avenida para buscar umas coxinhas no fascista Ragazzo. O grupo de tarados por coturno, como sempre, era formado por senhoras da terceira idade e cinquentões marombados com calças camufladas: “meu pai era militar e lá em casa tinha ordem”, me diriam se eu houvesse perguntado.

“Intervenção militar com Bolsonaro no poder!”, e aos poucos os discursos inflamados iam se misturando com o ruído de uma Paulista récem aberta ao vai-e-vem dos carros, mas ainda era possível ouvir referências a 1964, AI-5, militares, ordem, “acabar com esse Congresso que tá aí” e tudo o que eu já estou careca. De saber.

Foi o Zé Murilo de Carvalho quem abriu nossos olhos para o fato de que, na América Latina, existe uma convergência para o presidencialismo de caráter imperial, uma tendência ao presidencialismo absolutista. E o ex-ministro do STF, Victor Nunes Leal, sacaria logo o seu clássico “Coronelismo, Enxada e Voto” para mostrar as origens dessa moda.

Nenhum líder carismático de direita deste país teve uma base de representação popular (Jânio, Collor e Bolsonaro). E o presidencialismo de coalizão parece ser uma exigência num caso de partidarismo fragmentário. Maldita sina: ou ele é de coalizão ou é um projeto cesarista. Cesarista como define Gramsci, é claro.

A tara por coturno obscurece a compreensão de que, para Bolsonaro, não existe nenhuma hipótese equivalente a 1964. Em 1964, o golpe foi realizado por forças de oposição, não de continuidade. E em 64 o que houve foi um regime autoritário comandado por um conselho do Estado Maior das FFAA’s, com um rodízio presidencial subordinado a este conselho. Bolsonaro não teria a menor chance de participar de algo como 1964 porque não faz parte das FFAA’s. Olhos azuis brilhantes não é posto.

O que ele poderia implementar seria um cesarismo no modelo do Estado Novo de 1937, de continuidade and all that jazz. Mas mesmo a fórmula cesarista exige líderes com alguma sofisticação de articulação política, o que não é o caso.

De qualquer forma, sugiro às tias (agora da Paulista, que abandonaram o zap) um outro canto de guerra: “Novo Estado Novo, com Bolsonaro no poder!”