"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Tuesday, August 25, 2015

Por que filosofar? Para recapturar a realidade! - Eric Voegelin

Cap 22 do livro Reflexões Autobiográficas, de Eric Voegelin



As motivações do meu trabalho, que culminaram numa filosofia da história, são simples. Elas surgiram da situação política. Qualquer pessoa com uma mente reflexiva e bem-informada que viveu no século XX a partir do fim da Primeira Guerra, como eu, encontra-se cercado (se não oprimido) por todos os lados pelo enorme fluxo de linguagem ideológica - doravante entendidos como os símbolos linguísticos que aparentam ser conceitos, mas que são, de fato, topoi ou tópicos não analisados. Ademais, qualquer um que seja exposto a este clima de opinião dominante tem que lidar com o problema de que a linguagem é um fenômeno social. O estudioso não pode tratar os usuários da linguagem ideológica como parceiros de um debate, mas deve fazê-los objetos de análise. Não existe comunhão de linguagem com os representantes das ideologias dominantes. Consequentemente, a comunhão de linguagem que este observador precisa usar para criticar os usuários da linguagem ideológica deve primeiro ser descoberta e, se necessário, estabelecida.
A situação peculiar caracterizada acima não é novidade na história dos filósofos. Mais de uma vez na História a linguagem foi degradada e corrompida em nível tal que não pôde mais ser usada para expressar a verdade da existência. Isto aconteceu, por exemplo, com Sir Francis Bacon, quando ele escreveu seu Novum Organum. Bacon classificou os tópicos não-analisados da sua época como “ídolos”: os ídolos da caverna, os ídolos do mercado, os ídolos da especulação pseudo-teorética. Para resistir ao domínio dos ídolos, - ou seja, dos símbolos linguísticos que perderam o seu contato com a realidade - o estudioso precisa redescobrir as experiências da realidade, assim como a linguagem adequada para as suas expressões. A situação de hoje não é muito diferente. Basta lembrar do capítulo Ídolos do Mercado, no livro Pavilhão de Cancerosos de Alexander Solzhenitsyn, para reconhecer a continuidade do problema. Solzhenitsyn teve de retornar a Bacon e o seu conceito de ídolos a fim de defender a Realidade da sua própria existência contra o impacto do dogma comunista. É importante analisar o caso de Solzhenitsyn porque a sua consciência do problema, assim como a sua competência como filósofo em sua referência a Bacon, é certamente um modelo que, se seguido, mudaria fundamentalmente o clima intelectual das nossas universidades e faculdades. Em relação ao clima dominante nas ciências sociais, o filósofo na América encontra-se numa situação muito semelhante a Solzhenitsyn em relação ao Sindicato dos Escritores Soviéticos - com a importante diferença, obviamente, de que o nosso “sindicato” não se utiliza do poder governamental com o propósito de reprimir acadêmicos. Consequentemente, sempre existirão enclaves no Ocidente nos quais as ciências poderão sobreviver, ou mesmo florescer, apesar do terrorismo intelectual das instituições, como a mídia de massa, os departamentos das universidades, as fundações e as editoras comerciais.
Um situação comparável a presente ocorreu no tempo em que Platão começou o seu trabalho. Na interpretação convencional de Platão, é praticamente esquecido que os conceitos centrais do platonismo são dicotômicos. O termo filosofia não é autônomo, mas adquire sentido na contraposição com a predominante filodoxia. As questões sobre justiça não se desenvolvem abstrativamente, mas em oposição as concepções erradas de justiça, que de fato refletem a injustiça do meio. O próprio cárater do Filósofo ganha o seu sentido específico por meio da oposição ao do Sofista, que se empenha em construções errôneas da realidade com o propósito de alcançar ascensão social e lucros materiais.
É nesta situação que o filósofo precisa encontrar homens da sua própria estirpe, na comunidade que abarca o presente e o passado. Apesar de sempre existir um clima dominante de opinião ideológica, também existe, mesmo em nossa sociedade, uma grande comunidade de acadêmicos que não perderam contato com a realidade e de pensadores que tentam recuperar o contato que correm o risco de perder. Um dos típicos fenômenos do século XX é a situação de pessoas espiritualmente enérgicas rompendo com o grupo intelectual dominante afim de encontrar a realidade que foi perdida. Casos famosos foram, na Inglaterra, o rompimento de George Orwell com o seu meio intelectual; na França, o rompimento de Albert Camus com o ambiente intelectual parisiense; na Alemanha, o gigantesco trabalho de Thomas Mann no seu esforço de romper com as ideologias do Período Guilhermino e da República de Weimar, culminando na sua grande filosofia da história na introdução ao romance José e Seus Irmãos.
O mais importante meio de recobrar o contato com a realidade é recorrer aos pensadores do passado que não perderam a realidade ou que se comprometeram a recuperá-la. A questão de “por onde começar” é frequentemente um acidente biográfico. Um homem como Camus recorreu ao mito que fora biograficamente mais próximo de si na sua criação e educação no Norte da África. Um regresso similar ao mito, assim como a revelação israelita, é encontrado na obra de Thomas Mann. Neste caso, o apoio contemporâneo pode ser também percebido, como na relação entre Mann e Karl Kerenyi. Falando genericamente, os reservatórios de realidade na nossa sociedade podem ser encontrados nas ciências que lidam com as experiências e simbolizações intactas da realidade, mesmo se as próprias ciências tenham sofrido fortes danos pela influência do clima ideológico.
Na medida da minha própria experiência, estas áreas são a filosofia clássica e as obras de estudantes de filosofia clássica, como Paul Friedlander, Weiner Jager, E.R. Dodds ou Bruno Snell. Outra área é a filosofia Patrística e Escolástica, assim como os trabalhos dos seus representantes contemporâneos, como Etienne Gilson e Henri de Lubac. Uma terceira área é a história do Antigo Oriente Médio. Já falei da influência que recebi do Instituto Oriental de Chicago e do enorme progresso do estudo de história antiga nos últimos trinta anos. Uma outra área é a religião comparada; já mencionei as influências recebidas de estudantes de gnosticismo, e genericamente de estudiosos de religião comparada, como Mircea Eliade, Puech e Quispel. Mais recentemente, houveram também estudos de simbolismos antigos, remontando ao Paleolítico.
Em certa ocasião, tive oportunidade de observar o estranho fenômeno social de que as nossas universidades estão salpicadas de acadêmicos para os quais o estudo de simbolismos da Idade das Pedras, das civilizações neolíticas, civilizações antigas ou as civilizações chinesa clássica ou hindu, são meios de reconquistar o substrato espiritual que eles não encontraram no nível dominante das nossas universidades e igrejas. O problema social delineado acima ainda está muito pouco explorado, mas da sua importância eu posso testificar por experiência própria. Como estudante, eu estava cercado por um clima intelectual de metodologia neo-kantiana. No círculo da Teoria Pura do Direito, em Viena, um filósofo era uma pessoa que baseava a sua metodologia em Kant; um historiador era alguém que lia qualquer outro livro escrito antes de Kant. Consequentemente, meu interesse em filosofia clássica, que já era marcante naquela época, foi interpretado por meus colegas como um interesse histórico, e como uma tentativa de escapar da verdadeira filosofia representada pelos pensadores neo-kantianos. Este problema de reconstrução da sociedade pela inclusão, como seus membros, dos grandes pensadores do passado, inevitavelmente traz a mente a famosa carta de Maquiavel em que ele descreve, para o seu amigo Francesco Vettori (em 10 de dezembro de 1513), o curso dos seus dias em modestas ocupações na dúbia sociedade rural de San Casciano, para então, quando a tarde chega, se vestir em trajes festivos, entrar para o escritório e se juntar a companhia dos sábios antigos, para uma relação e comunicação urbanas.
Recuperar a realidade a partir das deformações contemporâneas requer um esforço considerável. Para tanto, é necessário reconstruir as categorias fundamentais de existência, experiência, consciência e realidade. Ao mesmo tempo, é necessário explorar as técnicas e estruturas destas deformações que atravancam a rotina diária, além de desenvolver os conceitos pelos quais a deformação existencial e as suas expressões simbólicas podem ser categorizadas. Este trabalho, então, precisa ser conduzido não apenas em oposição as ideologias deformadas, mas também as deformações da realidade por pensadores que deveriam ser os seus preservadores, como os teólogos.
No esforço concreto de encontrar o caminho por entre o labirinto da linguagem corrompida em direção a realidade e sua adequada expressão linguística, algumas regras que surgem nem sempre são do agrado dos intelectuais contemporâneos. A primeira - e talvez mais importante - regra metodológica do meu trabalho é o retorno as experiências que engendram símbolos. Nenhuma linguagem simbólica, atualmente, pode ser aceita como um símbolo idôneo, porque a corrupção já é tão profunda que tudo está sob suspeita. No curso deste esforço, descobri que eu precisava explorar o significado de filosofia como um símbolo criado pelos filósofos clássicos, cujo sentido deveria ser determinado com base no texto. As mudanças de significado que este símbolo sofreu com o passar do tempo, agora precisa ser determinado com cuidado, relacionando-o com o sentido original, porque somente por meio de tais estudos comparativos pode-se julgar se a mudança de sentido é justificável (porque considera aspectos da realidade que não estavam incluídos no sentido original) ou não (se elementos da realidade foram excluídos para a construção de um conceito novo e deficiente).
Esta regra de investigação analítica frequentemente suscita a oposição de intelectuais, como já presenciei em alguns debates, porque estes insistem no direito de dar as palavras qualquer sentido que queiram. A existência de um padrão baseado no fato histórico de que as palavras não estão apenas jogadas a esmo numa língua, mas são criadas por pensadores para a expressão das experiências quando eles as têm, é fervorosamente rejeitada. Eles preferem o que eu chamo de filosofia da linguagem Humpty-Dumpty1: a determinação do sentido das palavras é um exercício de poder intelectual que não pode ser submetido a crítica.
Uma ajuda considerável para a compreensão dos processos de deformação me veio dos grandes novelistas austríacos, especialmente Albert Paris Gutersloh, Robert Musil e Heimito von Doderer. Eles criaram a expressão segunda realidade a fim de expressar a imagem da realidade criada por seres humanos quando em estado de alienação. A principal característica deste estado de alienação, apoiada pela construção imaginativa de segundas realidades em oposição a realidade da experiência, é o que Doderer chamou de a “recusa em aperceber2” (Apperzeptionsverweige rung). O conceito aparece no seu romance Die Damonen, e eu sempre apreciei o fato de que ele desenvolveu este conceito enquanto discutia certas aberrações sexuais. O conceito de Apperzeptionsverweigerung foi formalmente desenvolvido nas observações introdutórias ao capítulo “Die dicken Damen” (as mulheres gordas), preferidas por um dos seus heróis.
A recusa em aperceber se tornou para mim o conceito central para o entendimento das aberrações e deformações ideológicas. Ela aparece numa variedade de fenômenos, dos quais o mais interessante é a interdição formal ao questionamento, exigida por Comte e Marx. Se alguém questionar suas doutrinas ideológicas perguntando sobre o fundamento divino da realidade, ele será informado por Comte que não deve fazer perguntas indolentes (“questões oiseuses”), e, por Marx, que deve se calar e se tornar um “socialista”: (“Denke nicht, frage mich nicht,” não pense, não me pergunte).
Esta atitude de não permitir questões relacionadas as suas premissas - questões que imediatamente explodiriam o sistema - é a tática empregada por ideólogos em debates. Em várias conversas com hegelianos, por exemplo, eu sempre chegava ao ponto em que precisava questionar as premissas da existência alienada que é a base da especulação de Hegel. Sempre que este questionamento surge, sou informado pelo respectivo hegeliano que eu não entendo Hegel e que só posso entender Hegel se aceitar suas premissas sem questioná-las. Se a interdição ao questionamento for entendida como a principal tática de todo o debate ideológico, o estudioso ganha pelo menos um importante critério para diagnosticar uma ideologia: o propósito do diagnóstico é determinar qual parte da realidade foi excluída a fim de tornar possível a construção do falso sistema. As realidades excluídas podem variar grandemente, mas um item que sempre terá de ser excluído é a experiência da tensão humana em direção ao fundamento divino da sua existência.
Uma vez que a consciência da tensão existencial é reconhecida como uma experiência crítica que o ideólogo deve excluir se quiser transformar o seu próprio estado de alienação num estado compulsório para todos, o problema da consciência desta tensão move-se para o centro do pensamento filosófico. O entendimento de ambas filosofias clássica e cristã, assim como as deformações ideológicas da existência, pressupõem o entendimento da consciência na plenitude das suas dimensões. A característica do que pode ser chamado de “concepção moderna da consciência” é a construção da consciência pelo modelo das percepções sensoriais na realidade externa. Esta restrição ao modelo de consciência para objetos da realidade externa se torna o artifício mais ou menos oculto na construção de sistemas no século XIX. Mesmo na centralidade de Hegel é possível observar, na sua Fenomenologia, que ele começa com uma percepção sensorial e é nesta base que ele desenvolve as mais altas estruturas da consciência. O caso é notável porque Hegel era um dos maiores conhecedores de história da filosofia; ele sabia, obviamente, que as experiências primárias da consciência como aparecem na obra dos filósofos clássicos não se referem as percepções sensoriais, mas a experiência de estruturas (como, por exemplo, estruturas matemáticas) e a experiência de voltar-se ao fundamento divino da existência, motivada pela atração exercida por este fundamento. Eu não tenho a menor dúvida de que um homem com o conhecimento histórico de Hegel ignorou deliberadamente as experiências imediatas de consciência, substituindo-as por modelos de percepção de objetos do mundo exterior altamente abstratos e historicamente tardios, com o objetivo de criar um sistema que expressasse o seu estado de alienação. Eu não sei de nenhuma passagem de Hegel onde ele reflete sobre a sua técnica de fraude intelectual, mas tal técnica se tornou explícita nos trabalhos de Marx, em Os Manuscritos Econômicos-filosóficos.
Se a experiência de objetos do mundo exterior é absolutizada como a estrutura de consciência como um todo, todos os fenômenos espirituais e intelectuais conectados com as experiências do fundamento divino são automaticamente eclipsados. No entanto, uma vez que eles não podem ser totalmente excluídos - afinal de contas, são a história da humanidade - devem ser deformados em proposições sobre a realidade transcendental. Esta deformação proposicional dos símbolos de filósofos e profetas é um dos fenômenos mais importantes da história da humanidade. Já foi altamente desenvolvido na filosofia escolástica, se consolidou na transição para a metafísica moderna em Decartes e então continuou como uma espécie de ortodoxia secundária para os ideólogos. Que a metafísica proposicional seja uma deformação da filosofia, continuada consistentemente como doutrina ideológica, eu considero uma das minhas mais importantes descobertas.
Uma vez que este problema é reconhecido, a questão que se coloca é do porquê que os seres humanos se embrenham em jogos de metafísica proposicional, assim como nas suas sucessivas ortodoxias de ideologias proposicionais. Qual é o motivo experiencial dos grandes dogmáticos modernos do século dezesseis em diante, que continua por mais de quatrocentos anos sem um retorno a realidade pré-dogmática da percepção advinda da experiência?
Esta questão conduz ao problema da alienação, ou seja, ao estado de existência que se expressa na deformação de símbolos em doutrinas. O problema, obviamente, não é novo. As deformações começaram na antiguidade cristã na medida em que o mito da polis foi esvaziado quando da destruição, pelos impérios, da sociedade que havia gerado o simbolismo. Com os estóicos e as suas observações da desordem existencial no início das conquistas imperiais, se inicia o entendimento da alienação, expressada pela criação do termo allotriosis3. Os estóicos, sendo hábeis filósofos, entendiam muito bem o fenômeno da alienação. Se a existência filosófica era a existência em consciência da humanidade do homem como constituída por sua tensão na direção do fundamento divino, e se essa consciência está na prática da existência realizada pela periagoge4 platônica - o voltar-se para o fundamento - então a alienação é o afastar-se do fundamento na direção de um self que se acredita ser humano sem ser constituído por sua relação com a presença divina. O voltar-se ao fundamento divino - a epistrophe5 clássica - é complementado, consequentemente, na descrição dos estados de existência humana, pela concepção estóica de apostrophe - o afastar-se do fundamento. Voltar-se para e afastar-se do fundamento divino se tornam as categorias descritivas fundamentais dos estados de ordem e desordem na existência humana.
Estas observações fundamentais dos estóicos referentes a estrutura da existência se combinam com as observações modernas mencionadas previamente sobre a recusa em aperceber. Afastar-se significa se recusar a aperceber a experiência do fundamento divino como constitutivo da realidade humana. Este afastamento intencional da experiência fundamental da realidade foi diagnosticada pelos estóicos como uma doença da mente. A ciência da deformação existencial pelo afastamento do fundamento e consequente afastamento do próprio self se tornaram a centralidade da psicopatologia, permancendo assim até a Renascença.
A questão voltou a evidência novamente no século XX, uma vez que o fenômeno de massa da desorientação espiritual e intelectual no nosso tempo tem atraído a atenção para o ato fundamental da apostrophe. Encontradas as causas da desordem numa variedade de sintomas secundários, como uma indulgência indisciplinada de paixões, é possível descobrir novamente, em psicologia existencial, que por detrás dos sintomas secundários está o problema fundamental da apostrophe - o afastamento do homem da sua propria humanidade.
O fenômeno da redescoberta descrita acima não está presente apenas no período moderno. Podemos observá-lo na Grécia Clássica, quando a observação de patologia social, expressada por Tucídides nos termos médicos da escola de Hipócrates, se tornou a base para a descoberta da ordem existencial por Platão e Aristóteles. Atualmente, de uma maneira muito semelhante, tendo passado por dois séculos de severas distorções da existência, o fenômeno volta a ser entendido como patológico; e, sendo descoberto como patológico, a questão de uma existência sã e bem ordenada novamente desperta atenção.



Notas:

1. Personagem de Lewis Carrol em Alice no País das Maravilhas.
2. Termo cunhado por Leibniz, que se refere a compreensão introspectiva ou reflexiva, pela mente, dos seus próprios estados interiores. Contrasta com percepção, que é a consciência de algo externo. O termo é usado por Voegelin para se referir a uma auto-consciência reflexiva.
3. Auto-alienação, alheamento da efetividade da experiência da existência humana.
4.Conversão, retorno. Termo platônico para a reorientação moral e cognitiva em direção a Verdade e ao Bem.
5. Se voltar para algo. Usado por Voegelin para se referir ao voltar-se para o fundamento divino após ter estado previamente perdido ou desviado pela auto-alienação ou allotriosis.

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