"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Wednesday, June 24, 2015

UM PEQUENO CONTO CONSERVADOR



Enquanto saía da faculdade, pensava no quanto o novo professor de Sociologia o deixara profundamente inspirado. "Parece que ele tem uma biblioteca na cabeça, cita até a página de cor", pensou. Se sentia realizado por ter escolhido o curso de Ciências Sociais. Finalmente havia encontrado algo que daria sentido a sua vida. Algo com o que poderia realmente fazer a diferença, mudar o mundo. E, como tinha acabado de ouvir na aula, a revolução deveria começar por aquelas pessoas da sua turma da faculdade, a geração consciente. "Somos os profetas de uma nova era". Profeta não, que esta palavra tem uma conotação religiosa e, como bem aprendeu, religião é o ópio do povo.
Esses pensamentos sempre o remetia a um sentimento que era como uma espécie de desforra para com a sua família, principalmente o seu primo. Nasceu e cresceu numa pequena cidade antes de vir morar no alojamento estudantil da faculdade, na capital. Sua família era grande, todos os primos moravam na mesma rua. Este, agora, fazia engenharia na mesma universidade. Não se falavam muito, afinal sempre foram muito diferentes. O primo vivia cercado de garotas, era do tipo atlético, gostava de futebol. Ele, no entanto, sempre fora tímido, quase não saia de casa. Seu passatempo preferido era ler O Mundo de Sofia. Era certamente um tipo intelectual e, por isso, incompreendido inclusive pela própria mãe, que sempre dizia para ele sair com o primo e conhecer as garotas da cidade.
De família muito tradicional e religiosa, importante na cidade, ele agora percebia o quanto eram retrógrados. Agora, que finalmente pensava com a própria cabeça. Os velhos costumes familiares, a igreja, tudo aquilo tinha ficado para trás. Sentia uma espécie de desforra quando percebia que aquele outro estava estudando apenas para o mercado de trabalho. O primo era mais uma vítima da educação neoliberal, formando mão-de-obra para o capital. Mas ele não! Estava no meio de pessoas com uma visão diferente do mundo, voltada para o social, para as minorias, para a libertação do homem.
Fazer parte desta missão o enchia de um gozo até então desconhecido. Seu coração acelerava e sua mente fluía em idéias sem fim. "Dá até pra escrever um livro". Lembrou da euforia que sentiu a cada aforismo quando, naquela semana, lera Nietzsche e se identificara com o Super-Homem. O alemão tinha sido como ele, um jovem tímido que terminou por marcar a cultura ocidental. Era este o futuro que o aguardava.
Seus pensamentos foram interrompidos por alguém que se aproximava do ponto de ônibus onde estava:
- Ô moço, o 317 já passou?, escutou.
- Ainda não, é este que estou esperando.
- Bão.
Que simpatia”, pensou. O senhor tinha um olhar cansado, mas divertido. Usava roupas sujas de cimento e tinta, com uma mochila meio rasgada a tiracolo. Esse era o verdadeiro proletário de quem falava Marx no Manifesto Comunista. O proletário de quem falava o seu professor. “Serão pessoas como ele que derrubarão o sistema e criarão um mundo mais justo”. A euforia interrompida retornou. Precisava conversar com aquele proletário, aprender com ele.
- Trabalhou até mais tarde hoje?
- Sim sinhô, obra atrasada, sabe...
- O que o senhor faz?
- Sou servente.
- Muito admirável essa sua vida e seu esforço. Sabe que eu estou na faculdade e estudo bastante sobre o papel dos proletários, né, trabalhadores como o senhor que são a base de sustentação da sociedade, trabalhando muitas horas por dia para garantir o sustento da família numa sociedade opressora e capitalista que te tira a mais-valia, te deixando com apenas uma parte pequena do valor daquilo que o senhor… Qual o nome do senhor?, perguntou enquanto entravam no ônibus que chegara.
- Valdir.
- Seo Valdir! - exclamou, enquanto se sentava do outro lado do corredor para poder continuar conversando sem precisar encostar em Seo Valdir e terminar por sujar a roupa de cimento ou tinta.
- Pois então, seo Valdir, a sua vida é fonte de inspiração para a gente lá na faculdade… Um filósofo que estudamos, chamado Marx, disse que a revolução que vai implantar um mundo melhor vai comecar por pessoas como o senhor.
- Max?
- Sim, Marx. Quando vocês perceberem que estão sendo roubados pelos patrões, que vocês são a base de sustentação da sociedade e os únicos que fazem o motor da economia girar, a revolução vai finalmente poder acontecer.
- É?
- Sim!
Continuou a falar sobre como ele mesmo era parte de uma elite intelectual que deveria guiar os trabalhadores para a criação de uma sociedade sem classes. Falou de Revolução Industrial, do DCE, de Paulo Freire, de desconstrução, de opressão e de libertação. Ali começava a concientização da classe trabalhadora de que falou o seu professor.
Foi se levantando enquanto o ônibus encostava no ponto em que ia descer. De longe avistou o Zanzi Bar, onde os amigos do DCE o aguardavam para curtir uma banda cover d'Os Mutantes. Se despediu do Seo Valdir com um sorriso e um aceno. Ainda sorriram um para o outro quando a porta se abriu. Seu coração se rejubilava.
"Moço inteligente", pensou Sêo Valdir. Se ajeitou, então, no assento, abriu a mochila e pegou uma Bíblia surrada. Precisava ler pelo menos dois capítulos até a hora de descer. Tinha feito um compromisso na igreja de ler a Bíblia toda em um ano. Sua mulher sempre cobrava: “promessa feita é promessa cumprida”. No último mês tinha atrasado muito a leitura, por causa das horas extras no trabalho. O engenheiro da construção também estava no seu pé. Estava cansado, mas feliz porque neste mês poderia ajudar com um pouco mais a filha récem-casada. Construir família não era fácil. “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria”, começou a ler.