"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Monday, February 27, 2017

O Conhecimento, em sua relação com a habilidade profissional - John Henry Cardinal Newman

PALESTRA 7: O CONHECIMENTO EM RELAÇÃO A HABILIDADE PROFISSIONAL
em "The Idea of a University"
John Henry Cardinal Newman

1.
Nas duas palestras anteriores, insistimos em primeiro lugar no cultivo do intelecto como um fim que deve ser buscado para o seu próprio benefício e, em seguida, na natureza deste cultivo, ou em que este cultivo consiste. A verdade, de qualquer tipo, é o objeto próprio do intelecto; o cultivo do intelecto, então, consiste em adequá-lo a apreensão e contemplação da verdade. Ocorre que o intelecto, em seu estado presente, com exceções que não carecem ser mencionadas aqui, não discerne a verdade intuitivamente, ou como um todo. Nós não conhecemos por contemplação simples e direta, nem num instante, mas, por assim dizer, por partes e acumulação, por um processo mental, pela circunscrição do objeto, pela comparação, combinação, correção mútua e adaptação contínua de muitas informações parciais e pelo emprego, concentração e ação conjunta das faculdades e exercícios da mente. A combinação dos poderes intelectuais, a ampliação e desenvolvimento e a compreensão são resultados de um treinamento. E tal treinamento é uma questão de hábito; não é a mera diligência, mesmo que rigorosa, que introduz a mente na verdade, nem a leitura de muitos livros, nem o contato com muitos temas, nem as experimentações, ou a presença em várias palestras. Tudo isto ainda não é o suficiente. Um homem que tenha realizado todos estes passos ainda estará vagando na ante-sala do conhecimento: não perceberá o que a sua boca repete, não verá com o olho da mente o que está diante de si, não alcançará as coisas como elas são, ou pelo menos será incapacidade de avançar um passo a frente, como resultado do que tenha adquirido, será incapaz de distinguir o verdadeiro do falso, retirar os grãos de verdade do amontoado de informações, ordenar as coisas de acordo com o real valor de cada uma e, se me permitem usar a expressão, construir idéias. Este poder é o resultado da formação científica da mente, é uma capacidade adquirida de formar juízos, de perspicácia, sagacidade, sabedoria, de um alcance filosófico da mente e de autocontrole e serenidade intelectual – qualidades que não advém da mera aquisição. Os olhos físicos, órgão de apreensão dos objetos materiais, são dados pela natureza; o olho da mente, do qual o objeto é a verdade, é um trabalho de disciplina e hábito.
Este processo de formação pelo qual o intelecto, ao invés de ser moldado ou sacrificado para algum propósito particular ou acidental, ou para alguma profissão ou habilidade ou ciência específica, é disciplinado para o seu próprio benefício, para a percepção do seu objeto próprio e para a sua própria alta cultura, é chamado Educação Liberal. E mesmo que não haja quem tenha trilhado este caminho até onde ele pode ser concebido, ou quem possua o intelecto que seja o padrão do que o intelecto deve ser, ainda assim é duvidoso que alguém não possa não apenas conceber, mas buscá-lo, fazendo do escopo e resultado deste treinamento o seu padrão pessoal de excelência. Muitos são os que se submetem a tal mister, garantindo-no para si mesmos em boa medida. A definição do padrão correto, o treinamento consoante e a condução de todos os estudantes de acordo com as suas capacidades, é isto que concebo como o papel da universidade.

(...)
10
Mas é preciso concluir estas reflexões. Hoje me limitei a mostrar que o exercício do intelecto, além de benéfico ao próprio indivíduo, também o habilita a cumprir com os seus deveres na sociedade. O filósofo e o homem do mundo diferem-se quanto ao conceito, mas os métodos pelos quais são respectivamente formados são basicamente os mesmos. O filósofo possui o mesmo domínio das questões do pensamento que o cidadão e o homem honrado nos assuntos de negócios e conduta. Se há que se definir uma finalidade prática para um curso universitário, eu diria então que é a formação de bons membros da sociedade. A sua arte é a da vida social e a sua finalidade é a aptidão para o mundo. Não pode restringir, por um lado, o seu panorama a uma profissão específica, nem criar heróis ou inspirar gênios, por outro. As obras dos gênios não se encaixam em nenhuma disciplina acadêmica, as mentes heróicas não se restringem a um estatuto. A universidade não é o nascedouro de poetas ou autores imortais, de fundadores de escolas, líderes de colônias ou conquistadores de nações. Não promete uma geração de homens como Aristóteles ou Newton, Napoleão ou Washington, Rafael ou Shakespeare, apesar de tais milagres já terem ocorrido em seu âmbito. Não é também, por outro lado, para a formação do crítico ou do pesquisador, do economista ou do engenheiro, apesar de que isto também está contido no seu escopo.
A formação universitária é um grande e ordinário meio para um grande e ordinário fim. Tem em vista a elevação intelectual da sociedade pelo cultivo da mente dos homens, do apuramento do gosto popular, do fornecimento de princípios verdadeiros ao entusiasmo nacional e objetivos sólidos as aspirações do povo, do oferecimento de grandeza e sobriedade às idéias correntes, da facilitação do exercício do poder político e do refinamento do trato na vida privada. A educação oferece ao homem, quanto as suas opiniões e juízos, uma visão clara e consciente, uma veracidade no seu desenvolvimento, uma eloqüência na sua expressão e uma força no seu fomento. O ensina a perceber as coisas como elas são, a descrevê-las com concisão, a desemaranhar a desordem intelectual, a detectar o sofisma e a descartar o irrelevante. O prepara para ocupar qualquer cargo com credibilidade e a dominar qualquer matéria com facilidade. O mostra como se comportar perante os outros, como se colocar no estado de mente alheio, como se apresentar aos seus semelhantes, como influenciá-los, compreendê-los e tolerá-los. Ele se sente à vontade em qualquer sociedade e sabe dialogar com todas as classes; ele sabe quando falar e se calar; sabe dialogar e sabe ouvir; faz perguntas pertinentes e aprende com os seus semelhantes, quando não tem nada a ensinar; está sempre pronto, sem ser inoportuno; é uma companhia prazerosa e um companheiro em quem se pode contar; sabe quando agir com seriedade e quando se divertir, e tem um tato apurado que o permite gracejar com elegância e ser sério com propriedade. Ele tem o repouso de uma mente ensimesmada, ao mesmo tempo que integrada no mundo, e é capaz de encontrar a felicidade no lar e no longínquo. Ele tem um dom que o serve em público e o apóia na solidão, sem o qual a sua sorte não é vulgar, e com o qual até o fracasso e o dissabor têm certo encanto. A arte que conduz o homem a tudo isto é, quanto ao objeto que almeja, tão útil quanto a arte da riqueza e a arte da saúde, apesar de ser menos suscetível ao método, e menos tangível, menos certa, menos completa em seu resultado.  


Sunday, February 12, 2017

Nova direita, erros antigos

Voegelin dizia que não existe comunhão de linguagem com os representantes de ideologias, porque estes operam por meio daquilo que Sir Roger Bacon classificou como “ídolos”, símbolos lingüísticos que perderam o seu contato com a realidade e apenas expressam a alienação ideológica do seu portador. Numa era como a nossa, onde a linguagem foi tão degradada e corrompida, uma pessoa que pretenda refletir honestamente sobre os problemas do seu tempo precisará, antes, identificar e demolir estes topoi.

E o topos do dia é a afirmação, diante da paralisação da polícia militar, de que esta classe profissional precisa ser defendida sempre e incondicionalmente, mesmo após a ação omissiva de usarem as suas famílias como barreira humana que permitisse uma paralisação sem punição militar.

A paralisação da PM no Espírito Santo criou um vácuo institucional que causou não só um pandemônio de degradações, invasões de propriedades e furtos, como a morte de mais de 60 pessoas. O cenário do dia seguinte ao fim da paralisação não deixaria a desejar a nenhum vandalismo black bloc, no melhor estilo de caos social proposto pelos frankfurtianos como um meio de destruição do status quo. E, em irradiação semelhante às manifestações black blocs, ouvem-se burburinhos de paralisações semelhantes no estado do Rio de Janeiro e Minas Gerais. “Coincidência”, dirão!

Não obstante, ideólogos de direita imediatamente passaram a defender a ação irresponsável da polícia sob a alegação de que... bem, de que “é preciso defender a PM”. Simples assim. O lugar-comum surge instantaneamente na boca de todos, como substituto de uma detida, inteligente e responsável reflexão sobre os efeitos reais da ação. Puro fetiche mental!

A primeira coisa que não lhes ocorre é que a defesa da PM é um corolário da defesa de um princípio que é anterior a instituição militar, qual seja, o princípio da ordem social. A PM deve ser defendida contra os ataques dos inimigos da ordem enquanto ela seja uma instituição que garanta esta ordem. A ordem política é o conjunto de instituições e normas que garantem a possibilidade de relações harmoniosas entre os indivíduos de uma sociedade. Se os membros de quaisquer destas instituições se recusam a cumprir o seu dever, permitindo que a anomia se instaure, defender esta recusa é promover o próprio estado de anomia.

Todos os teóricos comunistas concordam que estimular um estado de caos e desordem é a melhor maneira de concentrar o poder nas mãos de um partido revolucionário. Não é sem razão que os partidos de esquerda rapidamente vieram em defesa da greve da polícia.

Para uma esquerda que tem conseguido aparelhar boa parte das instituições do estado brasileiro para os seus propósitos revolucionários, os policiais militares sempre foram a categoria do funcionalismo público que se manteve como um intrépido desafio, pois seu regime laboral militar está protegido contra o controle sindical. É por isso – e só por isso – que a esquerda advoga a desmilitarização da polícia.

Agora, porém, foi descoberta uma nova forma de usar os policiais contra a própria instituição, instilando as famílias (e basta ouvir os áudios das convocações para identificar as várias palavras de ordem típicas de sindicatos) a impedirem seus maridos policiais de deixarem os quartéis.

É pueril o pensamento de que a paralisação da polícia militar possa beneficiar qualquer avanço da direita na atual conjuntura política. Se, no longo prazo, o estado de anomia beneficia a revolução cultural marxista, no curto cria instabilidade social suficiente para trazer o PT de volta ao poder nas eleições de 2018 como o salvador do país e restituidor da paz.

Mas o maior erro dos ideólogos que “defendem a polícia a qualquer custo” advém de uma incapacidade de aplicar os princípios conservadores ao caso real. Não lhes ocorre que qualquer reivindicação, por mais justa que seja, não pode se sobrepor a defesa e a proteção da vida humana. Se a direita tem razão ao criticar as utopias de esquerda que assassinaram 150 milhões de pessoas pela promessa ideológica do socialismo de instauração do paraíso terreno, agora cometem o mesmo erro, ao defender o ato irresponsável da PM que conduziu – como previamente era sabido que conduziria – à morte de tantas pessoas e ao caos instalado.

Ao colocarem a defesa da vida, da lei e da ordem abaixo da defesa de uma instituição, o ideólogo está substituindo um pensamento político por um slogan político. Cometem o mesmo erro apontado por Russell Kirk, em seu A Política da Prudência, perpetrado pelos neocons americanos, que abandonaram a defesa das coisas permanentes para abraçarem dogmas ideológicos, como a política externa expansionista.

Recuperar a realidade a partir das deformações contemporâneas, como propõe Voegelin, requer o tremendo esforço de reconstruir as “categorias fundamentais de existência, experiência, consciência e realidade”. Demolir estas deformações no nosso tempo é trabalho para aqueles que não devem satisfações a nenhum programa político ou ideológico, mas à sua própria consciência. É fazermos a pergunta de T.S.Elliot, “onde está a sabedoria que perdemos com o conhecimento?” e orientarmos as nossas escolhas políticas pela virtude da prudência, aquela que, segundo Platão e Edmund Burke, é a virtude mais necessária ao estadista.


A ideologia anima os homens padronizados, como diria G. Orwell, “que pensam em slogans e falam em balas de revólver”. A nova direita brasileira, pelo visto, já nasceu com erros antigos.