"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Tuesday, January 5, 2016

Uma história oculta do mal

CLAIRE BERLINSKI
Tradução: Rodrigo Morais

Original: http://www.city-journal.org/2010/20_2_soviet-archives.html


No imaginário coletivo do mundo, a palavra “nazista” é um sinônimo do mal. Existe uma compreensão já difundida de que a ideologia nazista – nacionalismo, anti-semitismo, o estado étnico-autárquico, a idéia de um líder supremo – foi causa direta dos fornos de Auschwitz. No entanto, não existe o mesmo entendimento de que o comunismo, com a mesma inevitabilidade, foi a causa de fome, torturas e campos de trabalhos forçados em todos os lugares em que foi implantado no mundo. Assim como pouco se reconhece que o comunismo foi responsável por quase 150 milhões de mortes durante o séc. XX. O mundo continua inexplicavelmente indiferente e ignorante acerca da ideologia mais funesta da história.

Como evidência desta indiferença, considere que os arquivos soviéticos continuam sem ser estudados. Pavel Stroilov, um exilado russo em Londres, tem em seu computador 50.000 documentos altamente secretos do Kremlin, ainda não publicados e não traduzidos, a maioria referente ao período do fim da Guerra Fria. Ele os roubou em 2003, quando fugiu da Russia. Como memória viva, eles valeriam milhões para a CIA; com certeza contam uma história do comunismo e do seu colapso que o mundo precisa saber. Ainda assim, ninguém ainda se interessou em guardá-los numa biblioteca respeitável, ou em publicá-los, ou em patrocinar a sua tradução. Na verdade, Stroilov não tem conseguido nenhuma atenção a estes documentos.

Existe ainda o caso do dissidente soviético Vladimir Bukovsky, que passou 12 anos em prisões, campos de trabalho forçado e psikhushkas (hospitais psiquiátricos para presos políticos) soviéticos, após ser condenado por copiar literatura anti-soviética. Ele também possui uma enorme coleção de documentos roubados e contrabandeados dos artigos do Comitê Central do Partido Comunista, os quais “contêm as origens e os términos de todas as tragédias deste século sangrento”, escreve. Estes documentos estão disponíveis online no site bukovsky-archives.net, mas a maioria ainda não está traduzida. Estão desorganizados, sem sumário e sem opção de busca ou indexação. “Eu os ofereci gratuitamente para todos os maiores jornais e periódicos do mundo, mas ninguém se interessou em publicá-los”, escreve Bukovsky. “Os editores sempre reagem com indiferença: E daí? Quem se importa?”.

Os originais da maioria dos documentos de Stroilov continuam nos arquivos do Kremlin e, como grande parte dos documentos secretos da União Soviética da era pós-Stalin, continuam secretos. Eles incluem, segundo Stroilov, transcrições de praticamente todas as conversas entre Gorbachev e líderes estrangeiros – centenas de documentos com um registro quase completo das questões diplomáticas daquela era, indisponível em qualquer outro lugar do mundo. Existem anotações do Politburo feitas por Georgy Shakhnazarov, um assessor de Gorbachev e pelo membro do Politburo, Vadim Medvedev. Há também o diário de Anatoly Chernyaev, o principal assessor de Gorbachev e vice-diretor do Comintern, datadas de 1972 até o colapso do regime. Existem relatórios escritos desde 1960 por Vadim Zagladin, que foi vice-diretor do Departamento Internacional do Comitê Central até 1987, quando se tornou assessor de Gorbachev, até 1991. Zagladin foi emissário e espião, responsável pela coleta de informações, a disseminação de desinformações e pela expansão da influência soviética.

Quando Gorbachev e a sua equipe foram depostos, eles levaram consigo cópias não-autorizadas destes documentos. Os documentos foram escaneados e guardados nos arquivos da Fundação Gorbachev, um dos primeiros think tanks independentes da Rússia, onde um pequeno grupo de pesquisadores autorizados tiveram um acesso limitado a eles. Então, em 1999, a fundação abriu uma pequena parte do arquivo a pesquisadores independentes, inclusive Stroilov. As partes essenciais desta compilação continuaram restritas; documentos só puderam ser copiados com a autorização por escrito do autor e Gorbachev se recusava a autorizar tais cópias. Mas havia uma falha no sistema de segurança da fundação, me explicou Stroilov. Depois de uma falha no sistema dos computadores – o que era comum – ele conseguiu ver a senha que o administrador digitou na rede da fundação. Com esta senha, vagarosa e secretamente, Stroilov copiou o arquivo e o enviou para servidores seguros ao redor do mundo.

Quando eu soube pela primeira vez dos documentos de Stroilov, acreditei que fossem falsos. Mas em 2006, após uma análise feita em cooperação com alguns proeminentes dissidentes soviéticos e espiões da Guerra Fria, juízes britânicos concluíram que eram autênticos e o pedido de asilo de Stroilov foi concedido. A própria Fundação Gorbachev, posteriormente, reconheceu a autenticidade dos mesmos.

A história de Bukovsky é semelhante. Em 1992, o governo do presidente Boris Yeltsin o convidou para testemunhar na Corte Constitucional da Rússia, em um caso sobre a constitucionalidade do Partido Comunista. O Arquivo Estatal Russo permitiu que Bukovsky tivesse acesso aos documentos, para preparar o seu depoimento. Usando um scanner manual, ele copiou milhares de documentos e os enviou para o Ocidente.

O governo russo não pôde processar Stroilov e Bukovsky por crimes contra os direitos autorais, uma vez que o material foi criado pelo Partido Comunista e pela União Soviética, entidades que não mais existem. No entanto, se tivesse ficado na Rússia, Stroilov acredita que teria sido condenado por divulgação de segredo de estado ou traição. O historiador militar Igor Sutyagin está atualmente cumprindo 15 anos em um campo de trabalho forçado pelo crime de ter coletado recortes de jornais e outros materiais e os enviado para uma empresa de consultoria britânica. O perigo que Stroilov e Bukovski enfrentou foi grave e real, e ambos acreditaram que o mundo prestaria atenção no material pelo qual eles correram tanto risco.

Stroilov alega que os seus arquivos “conta uma história completamente nova sobre o fim da Guerra Fria. A versão ‘comumente aceita’ da história daquele período consiste quase que totalmente de mitos. Estes documentos podem destruir estes mitos”. Seria verdade? Não sei dizer. Eu não leio russo. Dos documentos de Stroilov, eu só li alguns, que foram traduzidos para o inglês. Certamente que estes documentos não podem ser aceitos, pura e simplesmente, afinal foram escritos por comunistas. Mas a mera possibilidade de que Stroilov esteja correto deveria suscitar a curiosidade de todos.

Por exemplo, os documentos mostram um Gorbachev menos virtuoso do que a forma como ele é geralmente visto. Em um documento, ele graceja com o Politburo sobre a derrubada do Korean Airlines 007, em 1983 – um crime que foi não apenas monstruoso, mas que quase levou o mundo a um Armagedon nuclear. Este trecho de uma reunião do Politburo, de 4 de outubro de 1989, é igualmente perturbador:

- Lukyanov informa que o número real de mortos na Praça Tiananmen foi de 3.000 pessoas.
Gorbachev: Precisamos ser realistas. Eles (o governo chinês), assim como nós, precisam se defender. Três mil... E daí?

Uma transcrição de uma conversa de Gorbachev com Hans-Jochen Vogel, o líder do Partido Social Democrata da Alemanha Ocidental, mostra o presidente russo defendendo o massacre soviético aos manifestantes pacíficos em Tbilisi, em 9 de abril de 1989.

Os documentos de Stroilov também contêm transcrições de conversas de Gorbachev com líderes do Oriente Médio. Eles mostram uma conexão interessante entre as políticas soviéticas e as políticas internacionais da Rússia contemporânea. A seguir, um fragmento de uma conversa entre o presidente sírio Hafez al-Assad, em 28 de abril de 1990:

H. ASSAD: Para pressionar Israel, Bagdá precisaria se aproximar de Damasco, porque o Iraque não tem fronteira com Israel...
M. S. GORBACHEV: Eu também acho…
H. ASSAD: A abordagem de Israel é diferente, porque a própria religião Judaica afirma: a terra de Israel vai do Nilo ao Eufrates e a sua posse é uma predestinação divina.
M. S. GORBACHEV: Mas isso é racismo, combinado com messianismo!
H. ASSAD: Esta é a mais perigosa forma de racismo.

É evidente que estas questões são relevantes para a nossa compreensão das políticas russas contemporâneas, numa região com tamanha importância estratégica.

Existem ainda outras situações envolvendo os documentos de Stroilov e Bukovsky que mostram que a questão não está encerrada. Eles sugerem, por exemplo, uma proximidade suspeita da URSS com os arquitetos do projeto de integração européia, bem como com muitos dos mais antigos líderes da União Européia. Isto levanta um questionamento importante sobre a natureza da Europa contemporânea – questões que precisam ser respondidas quando os americanos consideram a Europa como um modelo de políticas sociais, ou quando buscam cooperação diplomática da Europa em importantes questões de segurança nacional.

De acordo com Zagladin, por exemplo, Kenneth Coates, membro britânico do Parlamento Europeu de 1989 a 1998, se aproximou dele em 9 de janeiro de 1990, para discutir as possibilidades de uma fusão gradual do Parlamento Europeu e do Soviete Supremo. Coates, disse Zagladin, explicou que “a criação de uma infraestrutura de cooperação entre os dois parlamentos ajudaria... a isolar os direitistas do Parlamento Europeu (e na Europa), aqueles que estão interessados no colapso da URSS”. Coates foi presidente do Subcomitê dos Direitos Humanos do Parlamento Europeu, de 1992 a 1994. Como foi possível que a pessoa responsável por promover as políticas de direitos humanos na Europa fosse um homem que, aparentemente, pretendia “isolar” os opositores da URSS e expandir a influência soviética na Europa?

Ou considere um relatório sobre Francisco Fernández Ordóñez, que liderou a integração da Espanha na comunidade européia, como ministro de relações exteriores. Em 3 de março de 1989, de acordo com estes documentos, ele explicou a Gorbachev que “o sucesso da perestroika tem um único significado, que é o sucesso da revolução socialista nas condições contemporâneas. E isto é exatamente o que os reacionários não aceitam”. Dezoito meses depois, Ordóñez disse a Gorbachev: “Eu sinto nojo intelectual quando leio, por exemplo, trechos dos documentos do G7 onde os problemas da democracia, da liberdade da pessoa humana e da ideologia da economia de mercado são colocados no mesmo nível. Como socialista, eu rejeito tal equação”. Talvez o mais chocante nesta questão foi o relatado pela mídia do Leste Europeu, de que os documentos de Stroilov sugerem que François Mitterrand planejou com Gorbachev para que a Alemanha fosse unificada como um ente neutro e socialista numa aliança franco-soviética.

Os registros de Zagladin também informam que o ex-líder do Labour Party britânico, Neil Kinnock, se encontrou com Gorbachev – sem a necessária autorização do parlamento, uma vez que Kinnock era líder da oposição – por meio de um emissário secreto, para discutir a possibilidade da suspensão do programa inglês de mísseis nucleares, o chamado Trident. Um trecho da transcrição do encontro entre Gorbachev e o emissário, Stuart Holland, é o que segue:

“Na opinião de Holland, a União Soviética deveria estar muito interessada na liquidação do programa Trident porque, entre outras coisas, o Ocidente – ou seja, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a França – teria uma séria vantagem sobre a União Soviética após a assinatura do Tratado de Redução de Armas Estratégicas (START I). Esta vantagem precisava ser eliminada... Do mesmo modo, Holland afirmou que, por razões óbvias, nós podemos pensar seriamente na consecução desta idéia apenas se o Labour assumir o poder. Ele disse que Thatcher... nunca concordaria com qualquer redução de armamento nuclear”.  

Kinnock era vice-presidente da Comissão Européia de 1999 a 2004, e a sua esposa, Glenys, é a atual ministra britânica na Europa. Gerard Batten, um membro do UKIP, percebeu a seriedade do episódio. “Se a informação dada sobre Gorbachev é verdadeira, isto significa que o Lorde Kinnock se aproximou de um dos inimigos da Inglaterra a fim de conseguir uma autorização para uma política de defesa do seu partido e, caso fosse eleito, para a política de defesa de todo o país”, disse Batten ao Parlamento Europeu, em 2009. “Se este relatório é verdadeiro, então o Lord Kinnock é culpado de traição”.

Da mesma forma, a Baronesa Catherine Ashton, que agora é ministra do exterior da União Européia, era tesoureira da Campanha pelo Desarmamento Nuclear da Inglaterra, de 1980 a 1982. Os documentos oferecem evidências de que esta organização recebeu “receita não identificada” da União Soviética nos anos 1980. Os documentos de Stroilov sugerem que o governo do atual comissário espanhol para assuntos econômicos e monetários, Joaquín Almunia, apoiou com entusiasmo o projeto soviético de unificar a Alemanha e a Europa em um “lar comum europeu” socialista e se opôs enfaticamente a independência dos estados bálticos e da Ucrânia.

Talvez alguém não se incomode com o fato de que atuais políticos europeus proeminentes defendiam estas idéias. Mas por que não? Seria inadmissível que pessoas com ligações com um partido nazista – ou com a Ku Klux Klan ou o regime do apartheid sul-africano – ocupassem posições de destaque na Europa hoje. As regras são diferentes, no entanto, para comunistas. “Nós temos um partido socialista – não eleito – governando a Europa hoje”, diz Stroilov. “Aposto que a KGB ficaria surpresa!”.

E o que diz Zagladin sobre as suas relações com o nosso atual vice-presidente, em 1979?
“Extraoficialmente, o senador Biden e o senador Lugar disseram que, no final das contas, não estavam preocupados em resolver os problemas deste ou daquele cidadão, apenas para mostrar ao público americano que eles se preocupavam com os ‘direitos humanos’... Em outras palavras, eles admitiram que o que estava acontecendo era uma espécie de espetáculo para o público, que eles não se preocupavam com o destino dos chamados dissidentes”.

Notadamente, o mundo demonstrou pouco interesse pelos arquivos soviéticos. Este parágrafo sobre Biden é um bom exemplo. Stroilov e Bukovsky escreveram um artigo para a revista online FrontPage, em 10 de outubro de 2008, que foi ignorado. Os americanos consideraram o artigo tão irrelevante que nem os oponentes políticos de Biden o tentaram usar como arma política. Imagine como deve ser, tendo passado os melhores anos da sua vida num hospital psiquiátrico soviético, saber que Joe Biden é agora o vice-presidente dos Estados Unidos e que ninguém se importa.

O livro de Bukovsky sobre estes documentos foi publicado em francês, russo e em algumas outras línguas eslávicas, mas ainda não foi publicado em inglês. A editora Random House comprou os direitos e, segundo Bukovsky, tentou obriga-lo “a reescrevê-lo sob uma perspectiva política de esquerda”. Bukovsky respondeu que “devido a certas peculiaridades da minha biografia, sou alérgico a censura política”. O contrato foi cancelado, o livro nunca foi publicado em inglês e nenhuma outra editora demonstrou interesse no mesmo. Ninguém também quis publicar o panfleto EUSSR, escrito por Stroilov e Bukovsky, sobre as origens soviéticas da integração européia. Em 2004, uma pequena editora britânica imprimiu uma versão abreviada do panfleto, mas que também foi ignorado.

Stroilov possui uma enorme lista de reclamações sobre jornalistas que inicialmente demonstraram interesse nos documentos para, em seguida, dizerem que o editor afirmou que a história é insignificante. Antes da visita de Gorbachev a Alemanha para a celebração do vigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim, Stroilov ofereceu os documentos a imprensa alemã. Ninguém quis. Na França, as notícias sobre os documentos mostrando os planos de Mitterand e Gorbachev para transformar a Alemanha num estado socialista causou alguns murmúrios de curiosidade, nada mais. A enorme coleção de documentos de Bukovsky sobre o financiamento soviético ao terrorismo, palestino ou não, continua não publicado.

Stroilov conta que ele e Bukovsky conversaram com Jonathan Brent, da Yale University Press, líder de um projeto de publicação da história da Guerra Fria. Ele afirma que Brent ficou inicialmente entusiasmado com a ideia e o pediu para escrever um livro, baseado nos documentos, sobre a primeira Guerra do Golfo. Stroilov escreveu e enviou os primeiros seis capítulos e nunca recebeu uma resposta de Brent, mesmo o tendo enviado vários e-mails. “Ainda não descobri qual parte do livro o assustou mais”, disse Stroilov.

Eu mesma enviei um email para Brent e não recebi resposta. Isso não significa muito, já que as pessoas estão sempre muito ocupadas. Eu estou pouco preocupada em imaginar tentativas complexas de esconder a verdade. Stroilov vê nestes eventos um “tipo de tabu, um entendimento comum do establishment de que é melhor não cutucar a onça com vara curta, não jogar pedras em casas de vidro, não falar sobre o esqueleto no armário”. Eu suspeito que seja algo ainda mais sério: ninguém se importa.

“Eu sei que chegará um tempo”, diz Stroilov, “em que o mundo olhará para estes documentos com atenção. Não escaparemos disso. Não podemos avançar enquanto não encararmos a verdade sobre o que aconteceu no século XX. Mesmo agora, não importa o quanto tentemos ignorar, estas questões estão voltando, de tempos em tempos”.

É verdade que estas questões retornam repetidamente, mas poucos se lembram de que elas já foram feitas anteriormente e menos ainda lembram as inconvenientes respostas. Ninguém fala muito sobre as vítimas do comunismo, ninguém erige memoriais para lembrar as pessoas assassinadas pelo estado soviético. (Alexander Yakovlev, no seu livro amplamente ignorado, Um Século de Violência na Russia Soviética, o arquiteto da perestroika afirma que estes números estão entre 30 a 35 milhões de pessoas.)

De fato, muitas pessoas ainda subscrevem os pontos principais da ideologia comunista. Políticos, acadêmicos, estudantes ou mesmo o taxista que seja um ocasional autodidata ainda se opõem a propriedade privada. Muitos permanecem enfeitiçados pelos modelos de planejamento econômico centralizado. Stalin, segundo as pesquisas, é uma das mais populares figuras históricas da Rússia. Em Istambul, onde vivo, não é pequeno o número de pessoas que se definem como comunistas; e tenho encontrado este tipo de pessoas em todos os lugares do mundo, de Seattle a Calcutá.

Nós insistimos, com razão, na total extinção do nazismo. Nós, com toda a razão, repudiamos todos aqueles que tentam reviver a ideologia nazista. Mas o mundo exibe uma perigosa dificuldade em reconhecer a história monstruosa do comunismo. Estes documentos devem ser traduzidos. Eles precisam ser colocados em uma biblioteca de boa reputação, ser catalogados de forma correta e estudados com cautela por acadêmicos. Acima de tudo, eles precisam ser disponibilizados e conhecidos pelo público que parece ter se esquecido do que a União Soviética representou. Se eles contêm aquilo que diz Stroilov e Bukovsky – e todas as evidencias sugerem que seja verdade – esta é uma obrigação de qualquer pessoa que dá alguma importância a história, política internacional e as marcas de milhões de mortos.

Monday, January 4, 2016

As melhores coisas do mundo sempre surgiram por acaso. A internet, por exemplo. E quase tudo de ruim é resultado de utopias que pretendem melhorar o mundo.

Escrito por James Delingpole
Tradução: Rodrigo Morais


Já que ninguém me perguntou qual o melhor livro de 2015, eu vou dizer: É o livro de Matt Ridley, Evolution of Everything.

Este livro não apareceu em tantas listas de recomendações quanto os seus antecessores do mesmo autor, Genoma e O Otimista Racional, nem recebeu tantas resenhas. E eu tenho uma forte suspeita do por quê: a sua mensagem é tão revolucionária que causaria desconforto em praticamente todos os grupos do espectro político: de cristãos e muçulmanos a executivos corporativos, historiadores, feministas, educadores e teoristas da conspiração, de verdes e socialistas (se é que são diferentes) a conservadores como George Osborne e David Cameron.

E ainda é o caso de ser, em minha opinião, cem por cento correto em todos os temas abordados, da internet aos banqueiros, da agricultura a educação, do debate sobre cultura vs. natureza a religião. E ninguém gosta de um espertinho – principalmente se ele é um espertinho formado em Eton, com um título, um patrimônio (construído por meio da exploração de minas de carvão) e uma infeliz reputação do homem que foi diretor da Northern Rock quando a empresa precisou ser socorrida pelo contribuinte – não é verdade?

O que é ainda mais interessante do que o livro é a forma como ele tem sido resenhado pelos bem-pensantes – principalmente John Gray, do The Guardian. Ele odiou o livro. Odiou tanto que nem foi capaz de fazer um esforço para lê-lo. Ou, se leu, ficou tão consumido por uma justa indignação que não conseguiu analisar nenhuma das “terríveis” questões levantadas ali.

A resenha de Gray é cheia de um desdém injurioso e arrogante: “um folheto pretencioso e enfadonhamente repetitivo”; “Se ele fosse um escritor mais sério e atencioso, Ridley poderia...”; “uma versão mecânica e atual de um libertarianismo de direita”. Há ainda um parágrafo inteiro de afirmações ad hominen, sobre os seus títulos, graduação e o caso Norther Rock. Quase nada, no entanto, sobre o assunto tratado.

Basicamente, o que o livro diz é que a evolução é um fenômeno que ultrapassa Darwin para abranger tudo. A internet, por exemplo. Ninguém a planejou. Ninguém – vai devagar, Al Gore e Tim Berners Lee – rigorosamente a inventou. Ela simplesmente surgiu, impelida pelas necessidades dos consumidores e tornada possível pela tecnologia disponível. Como diz Ridley, “ela é um exemplo vivo, diante de nós, do fenômeno de emergência evolucionária – de complexidade e ordem criada espontaneamente, de uma forma descentralizada, sem um planejador.

O que é obviamente uma terrível heresia para todos os tipos de controladores, desde os chineses, iranianos e russos, a Barack Obama, com célebre declaração em 2012: “A internet não se inventou a si mesma. Foi a pesquisa governamental que a criou”.

Esta alegação – como Ridley demonstra – é na melhor das hipóteses, discutível, e, na pior, mentira pura e simples. De fato, o governo foi responsável, na verdade, por postergar a internet. Uma das suas formas iniciais foi o Arpanet, financiado pelo Pentágono, que até 1989 ficou proibido aos propósitos comerciais ou privados. Um folheto do MIT de 1980 adverte os usuários de que “enviar mensagens eletrônicas via ARPAnet para fins comerciais ou políticos é tanto antissocial quanto ilegal”. A internet decolou apenas quando foi efetivamente privatizada, nos anos 90.

A mesma regra se aplica ao faturamento hidráulico, outra tecnologia normalmente atribuída a R&D, empresa financiada pelo governo. De acordo com um meme disseminado pelo California’s Breakthrough Institute, ele foi baseado numa tecnologia de imagem microssísmica desenvolvida pelo laboratório federal Sandia National. Hum. Não necessariamente. Ridley fez uma pesquisa e descobriu que o financiamento veio, na verdade, de uma empresa inteiramente privada, a Gas Research Institute, que contratou um técnico do Sandia. “Então, o único envolvimento do governo federal foi ter oferecido um espaço para eles trabalharem”.

Pode ter certeza, no entanto, que o falso meme vai continuar a ser compartilhado, porque ele encaixa numa narrativa na qual a maioria de nós gosta de acreditar, de que sem uma direção “do alto”, nada seria feito, nunca. Na sua forma mais bruta, este é um impulso que, no decorrer da história, levou os homens a atribuírem eventos a divindades – seja a extração de corações ainda palpitantes dos prisioneiros a fim de melhorar a colheita, ou a ordem governamental moderna que transforma colinas em complexos de energia eólica (no estilo Monte Caveira), para acalmar a deusa Gaia. E você encontra este impulso em todo lugar, da teoria dos Grandes Homens, defendida por muitos historiadores, a maneira como as ações das companhias sobem ou despencam assim que elas mudam de CEO.

Isso tudo decorre, acredito, de uma desconfiança inata que muitos de nós temos das indescritíveis maravilhas da nossa própria espécie. Pessoalmente, acredito desde há tempos que, deixados a nossa própria sorte, tenderíamos mais aos resultados bons do que aos maus – mesmo que motivados pelos interesses pessoais. Mas até o momento não tinha conseguido dar uma resposta perfeita para a pergunta que escuto de pessoas com uma visão pouco liberal clássica: “Você não gosta do governo. Então o que prefere, a Somália? ”.

Agora, graças a Ridley, eu tenho uma resposta. Nós dois concordamos que existe lugar para um governo que seja bastante limitado. Mas o que o peso da evidência histórica mostra, de forma esmagadora, é que praticamente tudo de bom que surgiu no mundo, o fez por acidente, e quase tudo de mal é (largamente) consequência não intencional de utópicos, com muito poder, tentando consertar o mundo.

Destes últimos, Ridley aponta, nós ganhamos a primeira guerra, a revolução russa, o Tratado de Versalhes, a Grande Depressão, o regime nazista, a segunda guerra, o Revolução Chinesa, a crise de 2008.

Dos primeiros, ganhamos o crescimento da renda global, o desaparecimento de doenças infecciosas, a limpeza dos rios e do ar, o uso da técnica de impressão digital para descobrir criminosos e livrar inocentes. Ainda assim, todo o nosso sistema global está orientado no sentido de receber diretivas de cima para baixo, que invariavelmente tornam as coisas piores. Nós nunca aprendemos, não é verdade?



Original: http://www.spectator.co.uk/2016/01/the-best-things-in-the-world-have-always-sprung-up-by-accident-take-the-internet-for-instance/

Friday, January 1, 2016

Trecho de uma carta de Fritjof Schuon, de junho de 1964, sobre os limites da ciência:


‘Não há que se aviltar uma ciência por não ser o que não aspira ser ou por não outorgar aquilo que não almeja outorgar... Não se pode acusar a química por permanecer numa restrita perspectiva humana em relação a matéria, porquanto não lhe compete ultrapassar tal ponto, e certamente nenhuma ciência física necessita fazê-lo.
… Ou somos Deus e percebemos a Realidade pura e total, ou não O somos e então a nossa visão das coisas é limitada; uma ciência cósmica “ao nível de Deus” seria uma absurdidade... Ou eu sei o que está detrás de mim ou não sei; se eu sei que existe uma árvore a três metros das minhas costas, minha ciência é adequada para o que pretende incluir; a questão do sentido metafísico da árvore é irrelevante. Se acredito que tal árvore é a única que existe, então não é a minha momentânea e concreta ciência da árvore que é falsa, mas sim a hipótese que fixei nela; isto é mais ou menos o que ocorre com a ciência moderna.

Destarte, para os fins de determinar o valor de dada opinião desta ciência, tudo o que necessitamos saber é se de fato a ciência moderna está errada no plano que está estudando ou se são quaisquer das suas arguições, injustificáveis. A ciência moderna está apenas parcialmente errada no plano dos fatos físicos; por outro lado, está totalmente errada nos planos superiores e em seus princípios. Está errada quando os nega, bem como nos falsos princípios que derivam desta negativa, e finalmente, nos monstruosos efeitos que esta ciência produz como resultado do seu Prometeanismo. Mas está correta quanto a muitos dados físicos e mesmo acerca de alguns fatos psicológicos, e certamente seria impossível isto não ser o caso, dada a lei das compensações; em outras palavras, é impossível ao homem moderno não estar certo sobre certas questões nas quais o homem antigo estava errado; isto é inclusive parte do processo de degeneração. O que é decisivo em favor do homem tradicional ou antigo, no entanto, é que, em geral, eles estão certos em relação a todas as questões espiritualmente essenciais.’

Ministra do exterior da Suécia ousa dizer a verdade sobre a Arábia Saudita. O que acontece depois deveria preocupar a todos nós.

Escrito por Nick Cohen


Se os lamentos de Je suis Charlie fossem sinceros, o mundo ocidental estaria em convulsões de apreensão e furor pelo caso Wallstrom. Ele possui todos os ingredientes para um confronto do tipo ‘conflito de civilizações’.

Há algumas semanas atrás a ministra do exterior da Suécia, Margot Wallstrom, denunciou a opressão a mulher na Arábia Saudita. Uma vez que o regime teocrático impede mulheres de viajar, conduzir negócios oficiais ou se casar sem a autorização de um guardião masculino, e meninas são forçadas a casamentos onde são, na verdade, estupradas por homens velhos, a ministra não disse nada que não fosse a mais pura verdade. Wallstrom criticou as cortes sauditas pela condenação de Raif Badawi a 10 anos de prisão e 1.000 chicotadas por ter criado um website em que defendia o secularismo e a liberdade de expressão. Estes são “métodos medievais”, disse ela, e uma “tentativa cruel de silenciar formas modernas de expressão”. E, novamente, quem discordaria do que ela disse?

A repercussão seguiu o padrão dos casos de Rushdie, dos quadrinhos dinamarqueses e do Hebdo. A Arábia Saudita retirou o seu embaixador e suspendeu a emissão de vistos para empresários suecos. Os Emirados Árabes Unidos fizeram o mesmo. A Organização para a Cooperação Islâmica, que representa 56 países de maioria muçulmana, acusou a Suécia de desrespeitar a variedade e riqueza dos padrões éticos do mundo – tão rico e variado que incluem, aparentemente, o açoitamento de blogueiros e a proteção a pedófilos.

Enquanto isso, o Conselho de Cooperação do Golfo condenou a “inaceitável interferência nos assuntos internos do reino da Arábia Saudita” e eu não apostaria contra uma insurreição de protestos anti-suecos a qualquer momento.

Ainda assim, não existe um “caso Wallstrom”. Fora da Suécia, a mídia ocidental praticamente não cobriu a história e os aliados suecos na EU não demonstraram qualquer inclinação no sentido de apoiar a ministra. Uma pequena nação escandinava sofre sanções, acusações de islamofobia e pode vir a sofrer coisas piores, e todos estão em silêncio. Mais uma vez, o escândalo é que não tenha havido nenhum escândalo.

É um sinal de como os valores da política moderna estão invertidos o fato de se presumir que um político que defenda a liberdade de expressão e os direitos da mulher no mundo árabe deva ser um esquerdista radical ou um neocon, ou talvez um defensor dos novos partidos da extrema-direita populista escandinava, cujo comprometimento com os direitos humanos são apenas uma desculpa para o ódio anti-muçulmano. Mas Margot Wallstrom é uma raridade moderna: uma política de esquerda que vai onde os seus princípios a leva.

Ela é a ministra do exterior de uma fraca coalização sueca entre os sociais-democratas e o Partido Verde, e assumiu o ministério prometendo uma política externa feminista. Ela reconheceu a Palestina em outubro do ano passado – e não! a Liga Árabe e a Organização para a Cooperação Islâmica e o Conselho de Cooperação do Golfo não condenaram esta ação como “inaceitável interferência nos assuntos internos de Israel”. Confesso que o gesto dela me pareceu contraproducente na época. Mas após Benjamin Netanyahu ter rechaçado a criação do estado palestino para garantir a sua reeleição, ela pode dizer com justiça que a História a inocentou.

Ela tratou então da versão saudita da lei de sharia. A sua crítica não foi meramente retórica. Ela disse que não era ético para a Suécia continuar com os acordos de cooperação militar com a Arábia Saudita. Em outras palavras, ela ameaçou a possibilidade de lucros das empresas suecas. A negação saudita em emitir vistos de negócios aos suecos ameaçam os lucros de outras empresas também. Podemos pensar nos suecos como um povo social-democrata que nunca deixaria preocupações tediosas se interpor no caminho da sua honradez. Mas isso não é inteiramente verdade, muito menos quando o assunto envolve dinheiro.

A Suécia é o décimo-segundo maior exportador de armas de fogo – um numero impressionante para um país com nove milhões de habitantes. Suas exportações para a Arábia Saudita totalizam 1,3 bilhões de dólares. Executivos e funcionários públicos estão cientes de que os outros países muçulmanos aderirão ao boicote saudita. Durante a “crise dos quadrinhos” – uma expressão que não consigo escrever sem virar os olhos de incredulidade – as empresas dinamarquesas sofreram ataques globais e a rede de supermercados francês Carrefour retirou produtos dinamarqueses das prateleiras para agradar aos clientes muçulmanos. Uma campanha coordenada de países muçulmanos contra a Suécia não é uma idéia fantasiosa. Existe inclusive a conversa de que a Suécia perca o seu assento no Conselho de Segurança da ONU em 2017 por causa de Wallstrom.

Colocado de forma simples, o establishment sueco entrou em polvorosa. Trinta executivos assinaram um manifesto dizendo que a quebra do tratado comercial “comprometeria a reputação da Suécia como um parceiro de negócios e de cooperação”. Ninguém menos que o próprio Sua Majestade o Rei Carlos XVI Gustavo convocou Wallstrom num final-de-semana para dizer que ele queria uma transigência. A Arábia Saudita conseguiu transformar a crítica a sua brutal versão do islam num ataque contra todos os muçulmanos, independentemente de serem ou não Wahhabis, e Wallstrom e seus colegas ficaram debilitados diante das acusações de islamofobia. Os sinais indicam que Wallstrom deverá ceder às pressões, principalmente porque o restante da Europa “progressista” não manifesta o menor interesse em apoiá-la.

Pecados omissivos dizem tanto quanto os pecados comissivos. Esta "não-questão" nos ensina três coisas. É mais fácil educar países pequenos como a Suécia e Israel naquilo que eles podem ou não fazer, do que a países como os Estados Unidos, China ou uma Arábia Saudita, que pode mobilizar um apoio muçulmano global quando criticada. Segundo, uma Europa que está ficando velha e pobre está descobrindo que a defesa da moral em políticas internacionais são um luxo que não podem mais ter. A Arábia Saudita está confiante desde o início de que a Suécia precisa mais do seu dinheiro do que ela precisa das importações suecas.

Finalmente – e o mais revelador na minha opinião – esta situação nos mostra que os direitos das mulheres sempre vêm por último. Fazem verdadeiras tempestades no Twitter e frenesis alimentados pela mídia sobre homens machistas sempre que alguma figura pública usa “linguagem inapropriada”. Mas quando uma parlamentar feminina tenta iniciar uma campanha pelos direitos das mulheres que sofrem numa cultura misógina e brutal, ela não é aplaudida, mas é recebida com um embaraçoso e revelador silêncio. 


Original: http://blogs.spectator.co.uk/2015/12/swedens-feminist-foreign-minister-has-dared-to-tell-the-truth-about-saudi-arabia-what-happens-now-concerns-us-all/

Liberdade de expressão é coisa do passado. Universitários de hoje exigem o “direito ao conforto”

O texto a seguir foi publicado no blog do jornal inglês The Spectator, no ano de 2014. Ainda é um dos artigos mais lidos do blog, ficando entre os 10 mais acessados tanto em 2014 quanto em 2015. O escritor cunhou a expressão "Estudantes de Stepford" para se referir ao tipo descrito no texto, fazendo um trocadilho com o título da obra de Ira Levin, The Stepford Wives, que foi adaptada para o cinema com o título em português 'Esposas em Conflito'.   


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Você conhece os estudantes de Stepford? Eles estão em todo lugar. Em vários campi ao redor do país. Sentados apáticos nos corredores dos blocos da universidade ou policiando, sub-repticiamente, os trotes e brincadeiras feitas por alunos bêbados em bares universitários. Eles se parecem com estudantes, se vestem como estudantes e até cheiram como estudantes. No entanto, os seus cérebros de estudantes foram substituídos por cérebros desprovidos de faculdades críticas e programados para se conformar. Para quem não os conhece, eles se parecem com jovens normais, devoradores de livros e que gostam de discutir idéias, mas qualquer um que converse mais de cinco minutos com um deles vai descobrir que tais estudantes estão muito mais interessados em calar o debate do que em iniciá-lo.

Eu fui atacado por um enxame destes estudantes esta semana. Na terça-feira eu deveria participar de um debate sobre o aborto na Christ Church, em Oxford. Fui convidado pelos Estudantes Pró-Vida de Oxford para defender os argumentos pró-escolha contra o jornalista Timothy Stanley, que é pró-vida. Mas aparentemente é proibido para homens falar sobre aborto. Uma tropa de feministas furiosas, estudantes de Oxford, todas repetindo roboticamente a mesma conversa de estarem se sentido ofendidas, criaram uma página no Facebook cheia de palavrões, exigindo que o debate fosse cancelado. Elas diziam ser ultrajante o fato de que dois seres humanos que “não possuíam úteros” defendessem posições acerca do aborto – política de identidade na sua forma mais vilmente biológica – e afirmavam que o debate ameaçava a “segurança mental” dos estudantes de Oxford. Trezentas pessoas na página prometiam aparecer no debate com “instrumentos” – só Deus sabe quais – a fim de interrompê-lo.

Incrivelmente, a Christ Church capitulou aos censores universitários, fazendo jus ao significado moderno do nome e anunciando que se recusariam a realizar o debate em função das suscitadas “questões de segurança e bem-estar”. Assim, numa das maiores instituições de ensino do mundo, o princípio democrático do debate livre e aberto, que permite a contraposição de opiniões diferentes diante de cidadãos aptos ao discernimento, foi transgredido, e os estudantes transformados em criaturas frágeis, crianças crescidas que precisam ser protegidas contra quaisquer idéias que possam alfinetar suas almas ou desafiar seus preconceitos. Uma das estudantes censoras inclusive se gabou da sua participação no cancelamento do debate, vestindo a sua intolerância como uma medalha de honra num artigo independente em que ela afirmava que “a idéia de que, numa sociedade livre, absolutamente tudo está sujeito ao debate tem um efeito danoso em grupos marginalizados”.

Esta não foi a primeira vez em que encontrei os estudantes de Stepford. No último mês, em outra prestigiada universidade inglesa, Cambridge, fui cercado pelos tais após participar de um debate sobre escolas confessionais. Não foi a minha defesa de que os pais têm o direito de enviar os seus filhos para escolas religiosas que fez com que eles quisessem me levar para a forca – por mais que eles repudiem esta minha visão progressista – mas foi a minha sugestão, feita nesta revista e em algum outro lugar, de que a “lad culture” (subcultura dos anos 90 de reação ao feminismo) não transforma homens em estupradores. As suas mentes mecânicas pareciam incapazes de computar que alguém poderia dizer uma coisa destas!

Seus olhos ficaram vidrados de certeza moral e eles demoradamente me explicaram que a cultura deforma mentes e molda comportamentos e esta é a razão pela qual é correto aos estudantes manterem coisas perversas e misóginas como o The Sun e música pop sexista fora do campus. “Nós temos o direito de nos sentirmos confortáveis”, diziam eles, como num mantra. Um deles – um rapaz – disse que as aulas obrigatórias sobre consentimento sexual, recentemente introduzidas para calouros em Cambridge para ensinar o que é e o que não é estupro foi uma ótima idéia porque a universidade poderia identificar “pré-estupradores”: homens que ainda não haviam estuprado ninguém, mas que poderiam fazê-lo. Os outros concordaram. Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Pré-estupradores! Eu perguntei se algum deles havia lido a distopia de Phillip K. Dick sobre um terrível mundo que caçava e punia pré-criminosos. Nenhum deles conhecia a obra...

Quando eu os contei que passara, no final do último milênio, os meus dias de estudante argumentando contra as mesmas idéias que eles hoje defendiam – contra a alegação de que o rap transformava negros em assassinos ou que os filmes de Tarantino tornavam os adolescentes selvagens e criminosos – nem mesmo uma centelha de ponderação passou pelos olhos deles. “Naquela época, as pessoas que defendiam estes argumentos censuradores e misantropos sobre a cultura determinar o comportamento não eram jovens como vocês”, eu disse. “Eram pessoas velhas e mais conservadoras, com cabelos tingidos”. Um momento de silêncio. Então, um dos Stepfords retrucou: “talvez eles estivessem certos”, ele disse. Minha mente foi tomada pela visão de Mary Whitehouse dando uma risada maligna em algum canto do cosmos.

Se a sua imagem de um estudante é a de alguém de espírito livre e mente aberta, que adora disparar contra ortodoxias, você precisa urgentemente atualizar o seu banco de imagens. Os estudantes de hoje são exatamente o oposto disto. É difícil pensar num segmento da sociedade que tenha sofrido uma transformação de tamanha proporção como esta que sofreram os estudantes. Passaram de espíritos impetuosos a estraga-prazeres, de questionadores inconvenientes a supressores da opinião ofensiva, no espaço de uma geração. Meu embate com os Stepfords anti-debate de Oxford e os criadores do sistema pré-crime de Cambridge repercutiram em outros encontros que tive com os intolerantes estudantes do século XXI. Eu fui vaiado por estudantes da Universidade de Cork por ter criticado o “casamento gay”; cercado e tratado como um “negacionista” por estudantes da UCL por sugerir que o desenvolvimento industrial da África deveria ser prioridade em relação ao combate ao aquecimento global; ridicularizado em Cambridge (novamente) por afirmar ser uma má idéia o boicote a produtos israelenses. Em todos estes casos, não foi o fato dos estudantes discordarem de mim que achei alarmante – discordância é ótimo! – mas porque eles ficavam em choque pelo fato de eu ter expressado tais opiniões, porque eu falhei em estar de acordo com o que eles acreditavam ser correto, porque eu ousei contaminar os campi e as suas frágeis massas cinzentas com idéias tão ofensivas.  

Onde antes os estudantes permitiam que os seus olhos e ouvidos pudessem ser bombardeados por tudo, de propaganda política perigosa a rock obsceno, agora eles se protegem de qualquer coisa que possa minar a autoestima ou – o maior dos crimes! – os tirem das suas “zonas de conforto”. Grupos universitários insistem que artigos online devam ter um botão de denúncia para o caso da matéria ter algo ofensivo.

A política de “no platform” [política da NUS, União Nacional dos Estudantes inglesa, que proíbe grupos racistas ou fascistas de usarem ou partilharem da tribuna da entidade: N.T.] de várias uniões de estudantes tem sido constantemente expandida para manter fora do ambiente acadêmico praticamente todas as idéias que não se adequam perfeitamente com o pensamento do grupo dominante. Onde antes apenas agitadores extremistas eram excluídos, agora qualquer um, de sionista a feministas não radicais, de pessoas com idéias “erradas” em relação aos transgêneros aos “negacionistas do estupro” (qualquer um que questione a afirmação de que a Inglaterra moderna está a um passo de uma “cultura do estupro”), se encontram em vias de exclusão da esfera universitária. Pela minha experiência em Oxford, diria que os próximos excluídos serão os grupos pró-vida. Em setembro a união dos estudantes de Dundee baniu a Society for the Protection of Unborn Child da feira de calouros, sob o argumento de que a sua campanha continha material “altamente ofensivo”.

É difícil que passe uma semana sem uma notícia de algo “ofensivo” sendo banido por estudantes. A música Blurred Lines, de Robin Thicke, por exemplo, foi banida em mais de 20 universidades. A justificativa dada pela Balliol College, em Oxford, foi de que o banimento da música se deu como um “meio de priorizar o bem-estar dos nossos estudantes”. Aparentemente, uma música pop de três minutos pode prejudicar a saúde dos estudantes. Mais de 30 uniões de estudantes baniram o The Sun, afirmando que a Página Três pode transformar aqueles “pré-estupradores” em estupradores reais. Feministas radicais costumavam queimar sutiãs – hoje elas insistem que as modelos os vistam. A união de estudantes da UCL baniu a Sociedade Nietzsche sob a alegação de a sua existência ameaçava “a segurança do corpo discente da UCL”.

As preocupações dos Stepfords são amplificadas exponencialmente nas mídias sociais. Assim que surge um tema contencioso, aparece também uma campanha no Facebook ou uma hashtag no Twitter, exigindo que o debate seja silenciado. Com a tecnologia, nunca foi tão fácil alardear um falso senso de indignação coletiva – e mirar aquela fúria sintética em direção as autoridades. As autoridades vítimas desta fúria se sentem tão assediadas que sucumbem as demandas e ameaças.

E os céus tenham piedade daqueles estudantes que não se curvam a mentalidade de Stepford. A união de estudantes de Edinburgh recentemente aprovou uma moção para banir os trotes “laddish” no campus. Estes estudantes estão sendo obrigados a renegar o estilo e as brincadeiras. No mês passado, o clube de rugby da London School of Economics foi suspenso por um ano após seus membros terem distribuídos panfletos recomendando aos “lads” que evitassem “barangas” e “depravação homossexual”. Sob pressão dos cartolas da LSE, o clube se retratou publicamente do seu comportamento “indesculpavelmente ofensivo” e declarou que os seus membros têm “muito a aprender acerca dos perniciosos efeitos dos trotes”. Eles foram obrigados a participarem de treinamentos sobre diversidade e igualdade. Nas universidades britânicas de 2014, você não recebe apenas educação, mas recebe reeducação, no melhor estilo soviético.

A censura alcançou o seu clímax com o surgimento das políticas de “espaço seguro”. Diversas uniões de estudantes “colonizaram” vastas áreas nos campi e as declararam “espaço seguro”, ou seja, lugares onde nenhum estudante deverá se sentir ameaçado, rejeitado ou diminuído, seja por trotes, idéias ou músicas como Blurred Lines. Segurança contra ataques físicos é uma coisa, mas segurança contra palavras, idéias, sionistas, lads, música pop, Nietzsche? Criamos uma nova geração que acredita que a sua própria autoestima é mais importante do que a liberdade de todas as outras pessoas.

Era isso que queriam dizer os alunos de Cambridge quando insistiam que tinham o “direito de se sentirem confortáveis”. Não se referiam a liberdade de se deitarem numa espreguiçadeira; se referiam ao direito de nunca serem desafiados por idéias ou terem as suas mentes assoladas por ofensas. Precisamente na época em que deveriam pular “de cérebro” em discussões pesadas e adultas, os estudantes estão tentando se esconder de qualquer lufada de controvérsia. Estamos testemunhando a vitória sub-reptícia do politicamente correto. Enquanto os extremos do politicamente correto são expostos ao público, como a censura a músicas de ninar, ninguém parece notar que os postulados principais do PC, que vai desde o desejo de acabar com algumas gírias ofensivas a necessidade de reeducar mentes aparentemente corrompidas, já foram engolidas por toda esta nova geração. Isto é um desastre sem medidas, pois significa que as nossas universidades estão se tornando criadouros para um novo dogmatismo. Como disse John Stuart Mill, se não permitirmos que as nossas opiniões sejam “frequente, completa e corajosamente discutidas”, esta mesma opinião será mantida como um “dogma morto, não como uma verdade viva”.


Um dia estes estudantes de Stepford, com os seus apetites para a censura, as suas guerras contra as gírias ofensivas e a assustadora conversa acerca de pré-crimes, estarão governando este país. E então não serão apenas nós que temos uma razão para visitar os campi que sofreremos os efeitos dos seus cadavéricos dogmas.



Escrito por Brendan O'Niel

http://blogs.spectator.co.uk/2015/12/free-speech-is-so-last-century-todays-undergraduates-demand-the-right-to-be-comfortable/