"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Friday, January 1, 2016

Liberdade de expressão é coisa do passado. Universitários de hoje exigem o “direito ao conforto”

O texto a seguir foi publicado no blog do jornal inglês The Spectator, no ano de 2014. Ainda é um dos artigos mais lidos do blog, ficando entre os 10 mais acessados tanto em 2014 quanto em 2015. O escritor cunhou a expressão "Estudantes de Stepford" para se referir ao tipo descrito no texto, fazendo um trocadilho com o título da obra de Ira Levin, The Stepford Wives, que foi adaptada para o cinema com o título em português 'Esposas em Conflito'.   


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Você conhece os estudantes de Stepford? Eles estão em todo lugar. Em vários campi ao redor do país. Sentados apáticos nos corredores dos blocos da universidade ou policiando, sub-repticiamente, os trotes e brincadeiras feitas por alunos bêbados em bares universitários. Eles se parecem com estudantes, se vestem como estudantes e até cheiram como estudantes. No entanto, os seus cérebros de estudantes foram substituídos por cérebros desprovidos de faculdades críticas e programados para se conformar. Para quem não os conhece, eles se parecem com jovens normais, devoradores de livros e que gostam de discutir idéias, mas qualquer um que converse mais de cinco minutos com um deles vai descobrir que tais estudantes estão muito mais interessados em calar o debate do que em iniciá-lo.

Eu fui atacado por um enxame destes estudantes esta semana. Na terça-feira eu deveria participar de um debate sobre o aborto na Christ Church, em Oxford. Fui convidado pelos Estudantes Pró-Vida de Oxford para defender os argumentos pró-escolha contra o jornalista Timothy Stanley, que é pró-vida. Mas aparentemente é proibido para homens falar sobre aborto. Uma tropa de feministas furiosas, estudantes de Oxford, todas repetindo roboticamente a mesma conversa de estarem se sentido ofendidas, criaram uma página no Facebook cheia de palavrões, exigindo que o debate fosse cancelado. Elas diziam ser ultrajante o fato de que dois seres humanos que “não possuíam úteros” defendessem posições acerca do aborto – política de identidade na sua forma mais vilmente biológica – e afirmavam que o debate ameaçava a “segurança mental” dos estudantes de Oxford. Trezentas pessoas na página prometiam aparecer no debate com “instrumentos” – só Deus sabe quais – a fim de interrompê-lo.

Incrivelmente, a Christ Church capitulou aos censores universitários, fazendo jus ao significado moderno do nome e anunciando que se recusariam a realizar o debate em função das suscitadas “questões de segurança e bem-estar”. Assim, numa das maiores instituições de ensino do mundo, o princípio democrático do debate livre e aberto, que permite a contraposição de opiniões diferentes diante de cidadãos aptos ao discernimento, foi transgredido, e os estudantes transformados em criaturas frágeis, crianças crescidas que precisam ser protegidas contra quaisquer idéias que possam alfinetar suas almas ou desafiar seus preconceitos. Uma das estudantes censoras inclusive se gabou da sua participação no cancelamento do debate, vestindo a sua intolerância como uma medalha de honra num artigo independente em que ela afirmava que “a idéia de que, numa sociedade livre, absolutamente tudo está sujeito ao debate tem um efeito danoso em grupos marginalizados”.

Esta não foi a primeira vez em que encontrei os estudantes de Stepford. No último mês, em outra prestigiada universidade inglesa, Cambridge, fui cercado pelos tais após participar de um debate sobre escolas confessionais. Não foi a minha defesa de que os pais têm o direito de enviar os seus filhos para escolas religiosas que fez com que eles quisessem me levar para a forca – por mais que eles repudiem esta minha visão progressista – mas foi a minha sugestão, feita nesta revista e em algum outro lugar, de que a “lad culture” (subcultura dos anos 90 de reação ao feminismo) não transforma homens em estupradores. As suas mentes mecânicas pareciam incapazes de computar que alguém poderia dizer uma coisa destas!

Seus olhos ficaram vidrados de certeza moral e eles demoradamente me explicaram que a cultura deforma mentes e molda comportamentos e esta é a razão pela qual é correto aos estudantes manterem coisas perversas e misóginas como o The Sun e música pop sexista fora do campus. “Nós temos o direito de nos sentirmos confortáveis”, diziam eles, como num mantra. Um deles – um rapaz – disse que as aulas obrigatórias sobre consentimento sexual, recentemente introduzidas para calouros em Cambridge para ensinar o que é e o que não é estupro foi uma ótima idéia porque a universidade poderia identificar “pré-estupradores”: homens que ainda não haviam estuprado ninguém, mas que poderiam fazê-lo. Os outros concordaram. Eu não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Pré-estupradores! Eu perguntei se algum deles havia lido a distopia de Phillip K. Dick sobre um terrível mundo que caçava e punia pré-criminosos. Nenhum deles conhecia a obra...

Quando eu os contei que passara, no final do último milênio, os meus dias de estudante argumentando contra as mesmas idéias que eles hoje defendiam – contra a alegação de que o rap transformava negros em assassinos ou que os filmes de Tarantino tornavam os adolescentes selvagens e criminosos – nem mesmo uma centelha de ponderação passou pelos olhos deles. “Naquela época, as pessoas que defendiam estes argumentos censuradores e misantropos sobre a cultura determinar o comportamento não eram jovens como vocês”, eu disse. “Eram pessoas velhas e mais conservadoras, com cabelos tingidos”. Um momento de silêncio. Então, um dos Stepfords retrucou: “talvez eles estivessem certos”, ele disse. Minha mente foi tomada pela visão de Mary Whitehouse dando uma risada maligna em algum canto do cosmos.

Se a sua imagem de um estudante é a de alguém de espírito livre e mente aberta, que adora disparar contra ortodoxias, você precisa urgentemente atualizar o seu banco de imagens. Os estudantes de hoje são exatamente o oposto disto. É difícil pensar num segmento da sociedade que tenha sofrido uma transformação de tamanha proporção como esta que sofreram os estudantes. Passaram de espíritos impetuosos a estraga-prazeres, de questionadores inconvenientes a supressores da opinião ofensiva, no espaço de uma geração. Meu embate com os Stepfords anti-debate de Oxford e os criadores do sistema pré-crime de Cambridge repercutiram em outros encontros que tive com os intolerantes estudantes do século XXI. Eu fui vaiado por estudantes da Universidade de Cork por ter criticado o “casamento gay”; cercado e tratado como um “negacionista” por estudantes da UCL por sugerir que o desenvolvimento industrial da África deveria ser prioridade em relação ao combate ao aquecimento global; ridicularizado em Cambridge (novamente) por afirmar ser uma má idéia o boicote a produtos israelenses. Em todos estes casos, não foi o fato dos estudantes discordarem de mim que achei alarmante – discordância é ótimo! – mas porque eles ficavam em choque pelo fato de eu ter expressado tais opiniões, porque eu falhei em estar de acordo com o que eles acreditavam ser correto, porque eu ousei contaminar os campi e as suas frágeis massas cinzentas com idéias tão ofensivas.  

Onde antes os estudantes permitiam que os seus olhos e ouvidos pudessem ser bombardeados por tudo, de propaganda política perigosa a rock obsceno, agora eles se protegem de qualquer coisa que possa minar a autoestima ou – o maior dos crimes! – os tirem das suas “zonas de conforto”. Grupos universitários insistem que artigos online devam ter um botão de denúncia para o caso da matéria ter algo ofensivo.

A política de “no platform” [política da NUS, União Nacional dos Estudantes inglesa, que proíbe grupos racistas ou fascistas de usarem ou partilharem da tribuna da entidade: N.T.] de várias uniões de estudantes tem sido constantemente expandida para manter fora do ambiente acadêmico praticamente todas as idéias que não se adequam perfeitamente com o pensamento do grupo dominante. Onde antes apenas agitadores extremistas eram excluídos, agora qualquer um, de sionista a feministas não radicais, de pessoas com idéias “erradas” em relação aos transgêneros aos “negacionistas do estupro” (qualquer um que questione a afirmação de que a Inglaterra moderna está a um passo de uma “cultura do estupro”), se encontram em vias de exclusão da esfera universitária. Pela minha experiência em Oxford, diria que os próximos excluídos serão os grupos pró-vida. Em setembro a união dos estudantes de Dundee baniu a Society for the Protection of Unborn Child da feira de calouros, sob o argumento de que a sua campanha continha material “altamente ofensivo”.

É difícil que passe uma semana sem uma notícia de algo “ofensivo” sendo banido por estudantes. A música Blurred Lines, de Robin Thicke, por exemplo, foi banida em mais de 20 universidades. A justificativa dada pela Balliol College, em Oxford, foi de que o banimento da música se deu como um “meio de priorizar o bem-estar dos nossos estudantes”. Aparentemente, uma música pop de três minutos pode prejudicar a saúde dos estudantes. Mais de 30 uniões de estudantes baniram o The Sun, afirmando que a Página Três pode transformar aqueles “pré-estupradores” em estupradores reais. Feministas radicais costumavam queimar sutiãs – hoje elas insistem que as modelos os vistam. A união de estudantes da UCL baniu a Sociedade Nietzsche sob a alegação de a sua existência ameaçava “a segurança do corpo discente da UCL”.

As preocupações dos Stepfords são amplificadas exponencialmente nas mídias sociais. Assim que surge um tema contencioso, aparece também uma campanha no Facebook ou uma hashtag no Twitter, exigindo que o debate seja silenciado. Com a tecnologia, nunca foi tão fácil alardear um falso senso de indignação coletiva – e mirar aquela fúria sintética em direção as autoridades. As autoridades vítimas desta fúria se sentem tão assediadas que sucumbem as demandas e ameaças.

E os céus tenham piedade daqueles estudantes que não se curvam a mentalidade de Stepford. A união de estudantes de Edinburgh recentemente aprovou uma moção para banir os trotes “laddish” no campus. Estes estudantes estão sendo obrigados a renegar o estilo e as brincadeiras. No mês passado, o clube de rugby da London School of Economics foi suspenso por um ano após seus membros terem distribuídos panfletos recomendando aos “lads” que evitassem “barangas” e “depravação homossexual”. Sob pressão dos cartolas da LSE, o clube se retratou publicamente do seu comportamento “indesculpavelmente ofensivo” e declarou que os seus membros têm “muito a aprender acerca dos perniciosos efeitos dos trotes”. Eles foram obrigados a participarem de treinamentos sobre diversidade e igualdade. Nas universidades britânicas de 2014, você não recebe apenas educação, mas recebe reeducação, no melhor estilo soviético.

A censura alcançou o seu clímax com o surgimento das políticas de “espaço seguro”. Diversas uniões de estudantes “colonizaram” vastas áreas nos campi e as declararam “espaço seguro”, ou seja, lugares onde nenhum estudante deverá se sentir ameaçado, rejeitado ou diminuído, seja por trotes, idéias ou músicas como Blurred Lines. Segurança contra ataques físicos é uma coisa, mas segurança contra palavras, idéias, sionistas, lads, música pop, Nietzsche? Criamos uma nova geração que acredita que a sua própria autoestima é mais importante do que a liberdade de todas as outras pessoas.

Era isso que queriam dizer os alunos de Cambridge quando insistiam que tinham o “direito de se sentirem confortáveis”. Não se referiam a liberdade de se deitarem numa espreguiçadeira; se referiam ao direito de nunca serem desafiados por idéias ou terem as suas mentes assoladas por ofensas. Precisamente na época em que deveriam pular “de cérebro” em discussões pesadas e adultas, os estudantes estão tentando se esconder de qualquer lufada de controvérsia. Estamos testemunhando a vitória sub-reptícia do politicamente correto. Enquanto os extremos do politicamente correto são expostos ao público, como a censura a músicas de ninar, ninguém parece notar que os postulados principais do PC, que vai desde o desejo de acabar com algumas gírias ofensivas a necessidade de reeducar mentes aparentemente corrompidas, já foram engolidas por toda esta nova geração. Isto é um desastre sem medidas, pois significa que as nossas universidades estão se tornando criadouros para um novo dogmatismo. Como disse John Stuart Mill, se não permitirmos que as nossas opiniões sejam “frequente, completa e corajosamente discutidas”, esta mesma opinião será mantida como um “dogma morto, não como uma verdade viva”.


Um dia estes estudantes de Stepford, com os seus apetites para a censura, as suas guerras contra as gírias ofensivas e a assustadora conversa acerca de pré-crimes, estarão governando este país. E então não serão apenas nós que temos uma razão para visitar os campi que sofreremos os efeitos dos seus cadavéricos dogmas.



Escrito por Brendan O'Niel

http://blogs.spectator.co.uk/2015/12/free-speech-is-so-last-century-todays-undergraduates-demand-the-right-to-be-comfortable/

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