"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Monday, August 31, 2009

minha fascinação

O que mais me fascina, dentre tudo que meus olhos me ofertam, são as pessoas. Uma mãe que carrega uma criança nas costas, um garoto que brinca com seu carrinho, um homem sentado na porta da casa, um velho enrolando fumo, um feirante, um padre, um garçom, um mendigo, uma lavadeira, um casamento, um ricaço, uma menina sapeca, um religioso qualquer, um menino chorando, uma família pedindo boléia, dois rapazes dançando na porta de um bar, uma dança, um batuque, um sorriso desconcertado.
Cada rosto, uma história, uma cosmovisão, uma esperança, amores, dores, perguntas, alegrias. In-divíduo. Cada olhar relata. Cada sorriso, uma porta de entrada pro infinito. Verbos encarnados, pequenos cristos. Deus definitivamente não está nos compêndios teológicos. Ele habita o sorriso de uma criança.

Quantos mistérios guardam estes chamados os seres humanos!

Variações sobre o tema Desenvolvimento

Antes de tudo, é mister ressaltarmos que o Desenvolvimento econômico representa um anseio coletivo. E existe um anelo, possivelmente correto, de que a melhor maneira de aliviar as tensões sociais é promover o progresso econômico acompanhado da distribuição igualitária dos frutos deste progresso. Mas o que precisamos mesmo aprender é que não basta repetir reiteradamente a palavra Desenvolvimento, num afã de macumba ideológica. Planos não são feitiços, Papai Noel não é Ministro da Fazenda e não existe mágica em questões econômicas.
As preocupações desenvolvimentistas são, sim, louváveis e legítimas. Não restam dúvidas de que precisamos de estradas, de fábricas, usinas, agricultura produtiva, investimentos. Boa parte da população vive em condições subumanas de miséria e analfabetismo, sofrendo de doenças hoje facilmente curáveis.
Mas há que se pensar no que existe de concreto, passando da idéia ao esforço ordenado, sabendo, como Sancho Pança, que “del dicho al hecho hay gran trecho” ou como Confucio, para quem “o caminho de dez mil milhas começa com um passo”.

Não pode haver rápido progresso econômico sem que os líderes do país - em todos os níveis, políticos, professores, engenheiros, empresários, líderes trabalhistas, padres, jornalistas - desejem o progresso econômico do país e estejam dispostos a pagar o preço, que é a criação de uma sociedade da qual tenham sido eliminados os privilégios econômicos, políticos e sociais.

Não, não vou, aqui, culpar o imperialismo ou o colonialismo pelo subdesenvolvimento. Existe escasso fundamento na atribuição do subdesenvolvimento ao imperialismo colonizador - sobretudo se atentarmos para o fato óbvio de que o Desenvolvimento é mesmo um dos produtos mais característicos da civilização ocidental que é acusada de imperialista. Na verdade, se não fosse o colonialismo, o Brasil ainda seria a terra dos tupinambás, a Coréia ainda seria o Reino da Manhã Tranquila, a China seria o Florido Império Central. Queremos voltar à época dos reinos e impérios africanos do período pré-colonial? Creio que não. Os dois países mais atrasados da África são a Libéia e a Etiópia e foram os únicos a preservar sua independência durante o século do colonialismo. Nas palavras de Roberto Campos, “o anti-colonialismo desonera-nos, a um tempo, da responsabilidade de pensar, da obrigação de mudar e do sentimento de culpa”. Vale o negativo exemplo brasileiro que, mesmo depois de quase 200 anos, ainda reclama o fato de ter sido colônia portuguesa de exploração e nunca assume as ações próprias em ordem a buscar o desenvolvimento do país.

Não amo (nem odeio) os europeus nem nenhum dos países ricos, não sou a favor do imperialismo (venha ele de onde vir), e também não advogo um retorno ao colonialismo.
Muito contrariamente a tudo isso, defendo que esse período histórico deve ser superado, que os traumas sejam curados e que caminhemos, com as nossas próprias pernas, a via do desenvolvimento e crescimento da nação moçambicana.

Como disse o Cassius shakespeariano, na obra Julio Cesar, “men at the same time are masters of their fates; the fault, dear Brutus, is not in our stars, but in ourselves, that we are underlings”.


Baseado no livro Psicologia do Subdesenvolvimento, de Meira Penna



Saturday, August 29, 2009

O canto que aqui não há...

Em Michigan alguém que retornara de Moçambique me falou sobre carros puxados por bois. Logo me empolguei, porque uma das melhores lembranças da minha infância no interior é o canto do carro de boi. Qual não foi minha decepção quando, aqui, vi que os bois puxam carroça, dessas leves que, no Brasil, são puxadas por cavalos.

Meu coração de menino ainda quer ouvir novamente aquele som grave e insigne do carro de boi. Seu canto, qual arauto, anuncia de muito longe a chegada do imponente rei do estradão. Pesado, vagaroso e rústico, ainda hoje, mas agora bem raro, vemos no interior do Brasil, donde, na ausência de boas estradas, o carreiro transporta as dádivas da terra, principalmente aquelas mais pesadas de que não suportam os muares. Não existindo estrada, ele, sereno, caminha por sulcos e obstáculos de quaisquer tipos de solo. E o seu canto avisa a distância sobre a sua chegada.
Feito de madeira maciça, as suas rodas possuem a “cantadeira” que, untada com sebo, são as cordas vocais deste cantor dos sertões: “Carro que não canta, não presta”, dirá o carreiro, empunhando seu aguilhão com que conduz as suas juntas de boi, unidas pela canga no pescoço de cada um. Na frente, sempre vai um menino, o candieiro, dando a direção à junta da guia.

Carro de boi: quem ouve o seu canto jamais esquece...

“The Rock” - T.S. Eliot

The Eagle soars in the summit of Heaven,
The Hunter with his dogs pursues his circuit.

O perpetual revolution of configured stars,

O perpetual recurrence of determined seasons,

O world of spring and autumn, birth and dying

The endless cycle of idea and action,
Endless invention, endless experiment,
Brings knowledge of motion, but not of stillness;
Knowledge of speech, but not of silence;
Knowledge of words, and ignorance of the Word.
All our knowledge brings us nearer to our ignorance,
All our ignorance brings us nearer to death,
But nearness to death no nearer to GOD.
Where is the Life we have lost in living?
Where is the wisdom we have lost in knowledge?
Where is the knowledge we have lost in information?
The cycles of Heaven in twenty centuries
Bring us farther from GOD and nearer to the Dust.

A eloquência daqueles olhos

Um olhar. Foi esta a refutação que hoje me deu uma criança a toda fala dos filósofos da linguagem sobre a mediação linguística do mundo (e do corpo). Não, não houve linguagem, não houve palavra, não houve verbo, nem substantivo, adjetivo também não houve. Apenas dois olhinhos que adentraram meu olhar. Não houve palavra, não precisou. O som do silêncio. A eloquência de um olhar. Dor? Curiosidade? Fome? Inocência? Infância? Alegria? Tristeza? Não. A linguagem foi frustrante naquele momento. Nenhuma palavra traduzia aquele olhar. Talvez toda a Humanidade, talvez tudo o que nos faz humanos, talvez toda a alma. Ainda não. Era mais. Muito mais que isso.
O olhar daquela criança não tinha idioma, não tinha raça, não tinha cor. Era o Tudo, era o Verbo Encarnado, era a Humanidade. E era mais que tudo isso também. Foi tão grande, tão intenso, tão maior que tudo, tão maior que qualquer emoção que jamais senti.
Wittgenstein disse que os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo. Mentiu. Eu nunca terei linguagem suficiente para aquele olhar e mesmo assim o senti. Transcendeu os limites da minha linguagem. Me guiou por tão longe, outro mundo, mas, ainda assim, eu poderia reconhecer, era minh’alma. O vôo daquele segundo foi infinito. Fui tocado mais do qualquer palavra, em qualquer idioma, poderia me afetar.

Ou talvez seja mesmo a linguagem, mas aquela dita por T.S. Eliot, que desconhece as palavras mas habita a Palavra. O Verbo.

Qual rosa cuja mera contemplação parece insuficiente, dei as mãos praqueles olhinhos e, surpresa!, os olhinhos acariciaram meus dedos. Toda aquela tão forte efusão de Verbo materializou-se, então, numa gota de lágrima no meu rosto mudo..

Thursday, August 27, 2009

Colonialismo de bajulação

Um fenômeno que afeta muito profundamente os africanos e causa enorme prejuízo é a bajulação estrangeira. O “branco” vem pra cá, agora com a antiga colonização terminada, com o mesmo ar de superioridade de antes, adicionando, desta vez, aquela cara (ainda superior) de piedade, distribuindo dinheiro e doações por onde quer que vá. As pessoas aqui, então, assimila essa relação de doador-beneficiário e aprende a sempre esperar presentes. Não precisam, por consequência, se preocupar com o desenvolvimento do seu lugar; bastam apenas esperarem os brancos com seus escambos.

A palavra ‘desenvolvimento’ vinda de um estrangeiro soa, por conseguinte, totalmente dissonante nessa relação de dependência que foi estabelecida. Enquanto isso, os africanos se destroem no alcool (já não falo só dos moçambicanos, porque essa situação é generalizada mesmo), sem empregos, sem capacidade de gestão de negócios, sem ao menos notar o rumo que estão tomando. Apenas esperam. Penelopeiam.

Para mim, essa relação de doador-beneficiário é nada menos que uma enorme falta de respeito ao povo africano. Uma assunção de que eles são pequenos demais, coitados demais, incapazes, por eles mesmos, de crescerem e alcançarem uma vida melhor.

Não pense que sou contra doações. Sou contra a política de doações, o vício e a bajulação. Pior que o sentimento de inferioridade é o sentimento de “coitadinho”. Sentimento de inferioridade, aliás, pode ser uma abençoada neurose. A obsessão germanizante de um povo em luta com o complexo de inferioridade gerou a filosofia de Fichte, Schelling e Hegel e a afirmação xenófoba do russismo contra a hegemonia franco-germânica produziu Dostoiévski, Soloviev e Lossky.

É triste ver crianças treinadas pra pedir dinheiro, não fazendo nada o dia todo que não seja pedir esmolas. É totalmente automático: “Estou a pedir cinco meticais”. Quando vêem brancos, então, correm na direção, com as mãos estendidas. E quem não se comove com uma criancinha negrinha e magrinha? Crianças que poderiam estar nas escolas aprendendo alguma coisa ou em qualquer outro lugar recebendo uma doação do qual nunca disporia: educação, formação técnica ou qualquer habilidade para a vida. No entanto, passam a vida como cenário de fotografias dos grandes humanitários despejando caminhões de ajuda.

Acatemos, então, a repreensão do Zaratustra de Nietzsche: “sois pressurosos em ajudar ao próximo e têm belas palavras para isso, mas eu vou digo que o vosso amor ao próximo é fruto do vosso mau amor por vós mesmos (...) desejareis seduzir o próximo por vosso amor e dourar−vos com a sua ilusão”. Aquilo que veio num intento de ajuda se reverte num mecanismo de maior escravidão e dependência. E se você é brasileiro, um analogia com a situação dos índios no Brasil ajuda a entender o problema. Aqui, pelo menos, ainda não assistimos ao suicídio de jovens sem motivos pra viver, obrigados ao confinamento em reservas, com muito alcool e pouca coisa pra fazer. Como vovó já dizia, “cabeça vazia, oficina do diabo”.

Pra finalizar, hoje ouvi um “cabeça-pensante” acusando de neo-colonialismo o investimento estrangeiro no país. Neo-colonialismo, meu saco, é continuar essa situação de abastecimento estrangeiro gratuito. Isso sim, impede o país de se desenvolver. Mantém a situação como está. Quer ajudar a África? Abra uma escola aqui! Distribua oportunidades.

Protozoário de uma figa!

Aqui em Moçambique o Plasmodium não perdoa nem na região montanhosa e fria de Chimoio. Essa semana dois colegas voluntários do projeto foram diagnosticados com malária. O Fábio, um italiano hiperativo que está com dificuldades de assimilar a palavra "repouso", e o Thiago. O Thiago, que fez o treinamento comigo em Michigan e simplesmente tinha acabado de chegar em Chimoio (na sexta passada), ontem acordou com dor de cabeça, tosse e cansaço, foi na clínica da cidade e, bingo!, lá estava o sacana do vermezinho nadando pela corrente sanguínea.
A malária aqui mata tanto quanto a AIDS. A cada 30 segundos morre uma criança no continente, vítima da doença. Na semana que eu cheguei morreu, também vitimado pela malária, o team leader da EPF de Nhambane. O país apresenta um grande número de sequelados, já que a malária, se não tratada rapidamente, pode causar graves deformações na pessoa e a falta de informação e acesso a hospitais faz com que os doentes mudem de estágio na doença até ser tarde demais. Outra situação agravante é o degradante estado do sistema de saúde e alguns métodos de diagnóstico que falham em descobrir a doença. Alie-se a isso o despreparo dos funcionários das clínicas e hospitais. Para se ter uma idéia, a enfermeira da clínica onde o Thiago foi diagnosticado quis utilizar uma seringa já usada anteriormente em outra pessoa, ao que foi impedida pelo nosso amigo enfermo de forma veemente. Ela alegou ausência de seringas novas na clínica...

Durante o treinamento em Michigan consultamos uma médica que prescreveu certo remédio que supostamente preveniria o contágio. O fato foi que eu deixei de tomar o remédio já no segundo dia na África, porque o efeito colateral me deixou muito mal, com tonteiras e vômitos. O Thiago tomou esse remédio desde que chegou e, mesmo assim, foi contaminado. Aqui, fui informado por outros voluntários que o remédio adquirido nos EUA é ineficiente contra a malária e não existe remédio que evite o contágio.
O que tem sido eficaz para mim, pelo menos até agora, é o repelente de insetos. Durante todo o dia e antes de dormir, renovo meu perfume, emanando o cheiro de repelente onde quer que eu vá... Além disso, o mosquiteiro ajuda a manter o sono tranquilo.

Tuesday, August 25, 2009

Geração Biz

Como convencer um pai a não vender a virgindade da filha de 13 anos de idade, já que ele vê a si mesmo como o seu dono, com autoridade para dispor do corpo e das vontades dessa criança?

Como convencer um jovem casal de namorado a não engravidar tão cedo a fim de que continuem indo a escola e ao menos termine a educação básica?

Como convencer um pai a não tirar a filha de 14 anos da escola com o objetivo de que ela engravide e cumpra “o seu papel na sociedade” de dar à luz a um filho o mais cedo possível?

Como convencer uma sociedade a permitir uma adolescente grávida a continuar na escola?

Como convencer um jovem casal enamorado a usar preservativo?

Como ensinar uma inocente menina de 14 anos a não ceder às propostas, barganhas e presentes de velhos de 50 anos que a querem como objeto sexual?

Como ensinar um jovem herdeiro de uma cultura poligamica e machista que ter mais de uma namorada é infidelidade e, pior, um risco maior de contaminação de HIV?

Como ensinar essa cultura machista a respeitar as suas mulheres, evitando pelo menos a violência doméstica?

Essas e outras questões povoam o pensamento de jovens que se voluntariam num programa do Governo de Moçambique chamado Geração Biz. Hoje eu acompanhei o trabalho do Cláudio, no recrutamento de jovens para esse programa. Jovens com boas aptidões para a comunicação e mobilização de outros jovens no sentido de mudar o pensamento das novas gerações. Uma galera que está de parabéns pelo trabalho que vêem fazendo por este lindo país.

Nota para um dos concorrentes às vagas, de 19 anos, cujo nome me escapa, mas que, depois de demonstrar muita inteligência e uma excelente capacidade de comunicação, disse que queria ser voluntário da Geração Biz porque, além do fato de poder ajudar na conscientização dos jovens da comunidade, ele, sendo órfão de pai e mãe, não tinha condições de voltar a escola, que deixara 2 anos atrás, e, como os integrantes do projeto recebem como benefício a isenção de custas escolares (aqui todas as escolas, inclusive públicas, cobram um certo valor do estudante), ele teria a oportunidade de voltar a estudar. Nem preciso dizer que ele ganhou a vaga...



Suposições para uma psicologia coletiva de Moçambique

O continente africano, desde tempos imemoriais, assistiu a composição, apogeu e declínio de vários impérios dentre as tribos que o habitaram.
Destes, o segundo maior império no séc. XIX, Império de Gaza, dominou boa parte da região onde hoje é Moçambique, desde o rio Zambeze até o rio Maputo, tendo seu apogeu iniciado no ano de 1828. Shoshangane, um ex-general zulu que se revoltou contra o famoso imperador Chaka Zulu, fugiu para o norte em direção onde hoje é Moçambique, dominando os povos daquela região e formou, então, o seu próprio império. Quando ele chega na região onde fez a sede do império, Shoshangane expulsa os portugueses daquela área, matando a maioria deles.
Aos outros reis da área, este imperador cobrava impostos, principalmente na forma de marfim, que era comercializado com os portugueses estabelecidos mais ao norte. Comercializavam também escravos, normalmente vencidos nas batalhas, que, vendidos aos portugueses, eram enviados principalmente para as Americas.
A dinastia dos imperadores de Gaza dominaram um território maior que a Península Ibérica (Portugal e Espanha juntos), quase metade do que hoje é Moçambique, exercendo forte influência sobre toda a região ao redor, numa estrutura política semelhante ao sistema feudal europeu.
A grandeza deste império foi tão grande que ainda hoje os portugueses escrevem essa 'história' com rancor, atribuindo, inclusive, todo esse poder a uma aliança com a Inglaterra. De fato, os portugueses, nesse período, nunca adentraram seu controle nessa região, não obstante a Conferência de Berlim ter determinado aquela área ao controle português. Com exceção de pequena parte da Zambézia e da Ilha de Moçambique, a soberania portuguesa era meramente nominal e os potentados negros e mulatos escarneciam-na impunemente.
Ngungunhane, o Leão de Gaza, foi o último imperador deste império e seu reinando estendeu-se até 28 de Dezembro de 1895, dia em que foi feito prisioneiro pelo português Joaquim Mouzinho de Albuquerque. Por ser já famoso na imprensa mundial da época, os portugueses não o fuzilaram. Antes, foi desterrado para os Açores, onde se torna uma espécie de atração turística, vivendo o resto da vida a fazer cestos e caçar na ilha onde viveu até morrer por hemorragia cerebral em 1906.


Fiz essa pequena narração sobre o passado do país para “dar pano pra manga” numa discussão da psicologia coletiva moçambicana. O fato é que, desde a sua independência até os dias de hoje, Moçambique possuiu 3 presidentes, que foram Samora Machel, Joaquim Alberto Chissano e, atualmente, Armando Guebuza. Um fato interessante sobre estes homens é que todos são oriundos da região que sediou o império africano de Gaza. Os dois primeiros nasceram na província de Gaza e o último é de Nampula, mas viveu em Maputo a maior parte da sua vida. Parece existir, no imaginário popular moçambicano, uma referência ao comando de Gaza, tanto numa forma de resgatar a grandeza do passado quanto no sentido de uma herança arquetípica de submissão a Gaza. Mas isso é assunto pra uma pesquisa mais profunda...

Monday, August 24, 2009

Que beleza, é uma partida de futebol!

Um jogo de futebol por aqui oferece uma gama de novos termos que, se você é do país do futebol, não pode morrer sem saber. Se por acaso vier em Moçambique e quiser jogar uma partida, se dirija ao campo mais perto de onde estiver. Existem muitos, basta avistar as BALIZAS em qualquer terreno baldio e você está diante de um palco futebolístico.
Para iniciar uma partida, é bom que você tenha o EQUIPAMENTO para diferenciar cada EQUIPA, mas também aceitam a divisão entre os "sem-CAMISOLA" e os "com-CAMISOLA". Para calçar os pés, use sempre a BOTA. Caso não tenha, pode pedir emprestado ao moçambicano mais perto de você.
Uma EQUIPA é dividida entre os AVANÇADOS, a DEFESA e o GUARDA-REDES.
O objetivo do jogo ainda é chutar a bola dentro das BALIZAS e, assim, fazer o GOLO. Isso se o GUARDA-REDES não espalmar para fora. Assim sendo, nunca diga escanteio. Olhe para o juiz e grite: CANTO! Se ficar muito cansado, peça pra ser substituído por algum dos jogadores SUPLENTES. Mas caso você seja, como eu, um perna-de-pau, pode ficar de fora, vai sentar na BANCADA, no grupo dos ADEPTOS, gritando, cantando e batendo palmas. E, para voltar às expressões da terrinha, prepare-se para o futebol mais raçudo e cheio de trombadas violentas que você jamais viu.

Sunday, August 23, 2009

... e tem a dor.

Depois que você se acostuma com toda a euforia do lugar, passa a olhar melhor para as pessoas. Andando pelas vilas, antes de me focar, eu apenas era o muzungu que respondia a insistentes “bom dia”. Depois, passei a olhar as pessoas nos olhos e uma coisa muito forte aconteceu comigo. Num recôndito mais profundo que a música existe uma dor. Dor de um povo sofrido. Sofrimento da guerra, da fome, das doenças, da morte. E sofrimento da ausência de sentido.
Hoje, andando pelo bairro de Nhamatanda, via os olhos deste sofrimento. Andando pelas ruas, mulheres esqueléticas e uma imagem que me chocou. Uma criança com a barriga inchada pelos vermes, deitada no chão de uma pequena varanda da casa de palha. Os olhos abertos já não tinham o brilho com o que identificamos o olhar de uma criança. Os irmaozinhos brincavam por perto enquanto ele olhava desinteressado. Desinteressado da brincadeira, desinteressado da infância, desinteressado de um sorriso. Apenas dor.
Mais à frente, um garoto de 10 ou 11 anos fabricava tijolos com argila no quintal de casa. Vários tijolos amontoados testemunhavam seu tempo naquele labor. E a infância passando lá fora...
A falta de sentido? Você a encontra nos cantos das ruas, bêbadas, caídas, sujas, abandonadas. O alcool é o refúgio maldito desse povo que sofre. Vêem a vida passar pelos olhos vermelhos e corpo sujo pelo vômito alcoolico e, cambaleantes, se dirigem a lugar nenhum.

Esperança e sentido são suas maiores fomes.

Moçambique, música para os seus olhos...

Meus olhos se perdem na musicalidade deste lugar. Toda cidade ou vila em Moçambique tem uma musicalidade particular, uma euforia diferente, mas sempre uma euforia moçambicana. Meus olhos se perdem esperando pelos meus ouvidos que seguem cada som. Música, qualquer que seja ela, tem um poder muito forte sobre mim. Às vezes, na maioria delas, um efeito paralisante. Principalmente quando nunca a ouvi antes. Disso posso dizer que sou um escravo. E nisso está o meu maior encanto por esse lugar.
Os moçambicanos não apenas fazem essas músicas. Eles sentem. Sentem toda essa musicalidade. E dançam por ela. Em todo lugar, em todo o tempo, o moçambicano dança. É lindo ver uma criança de 5 anos dançando melhor que qualquer sambista da Sapucaí. Dançam e sorriem. E a vida vai passando em compasso binário.

A Batalha

O sol queimava a face daqueles homens. A pele, negra como a noite mais escura, brilhava, refletindo o sol do deserto. O suor que escorre, umidecendo a negritude qual óleo que besunta uma escultura, reforça o brilho daquela raça. São os deuses do deserto. O grupo, armado de coragem e bravura, mira, com fúria no olhar, o inimigo, postado à frente naquele campo que testemunhara tantas vezes batalhas como aquela. São em mesmo número e em mesma intrepidez. Cores diferentes nas suas vestes indicam seus diferentes lados na batalha que está para começar. Mais uma vez haveria a defesa daquele território, como muitas gerações haviam feito antes destes que agora ocupam essa arena.
À frente do grupo que defendia aquele território estava aquele que aparentava ser o líder. Maior em força e tamanho, exibia aos inimigos a robustez dos braços torneados, onde bíceps e tríceps apareciam perfeitamente delineados, dando, juntamente com os avantajados músculos do tórax, a impressão de que ele vestia uma armadura de guerra.
Suas coxas negras exibiam também o mesmo poder, testemunhando a presença anterior em muitas outras batalhas, donde acumularam toda a força e resistência. As pernas, mais finas, davam àquele guerreiro a habilidade do melhor corredor, vantagem naquele campo aberto e repleto de inimigos.
Dele também se via o suor a escorrer pelo corpo, realçando o poder daquela cor tão escura. Seus olhos flamejantes testificam o legado guerreiro da raça. Seu pai, seu avô e muitas gerações passadas visualizam o inimigo por meio daquele olhar. Toda a fúria de um povo forjado na batalha. É sem titubear que, ao contemplar seu físico, os homens da sua tribo se faziam tão confiantes. Parecia mesmo que a batalha já estava ganha. Seus destinos estavam nas mãos daquele herói.
De repente, um agudo som indica o início do combate. Os homens correm na direção de onde estavam os inimigos. As fortes e ágeis pernas saltam após leves toques no chão, dando a impressão de que aqueles homens voam. Todos correm em direções estrategicamente pré-estabelecidas, conhecedores que são daquele tipo de batalha.
Então se dá o encontro com o inimigo. Pernas se chocam bruscamente, violentamente os guerreiros avançam sobre o inimigo. Empurrões, violências, chutes, palavras inaudíveis. O suor se intensifica. Os bravos homens avançam com fúria.
Mas os homens das outras vestes também são bravos. Logo se percebe que aquela não seria uma batalha fácil. Toda a fúria se transforma em secos e súbitos ruídos dos golpes que aquele sol testemunha.
Ouvem-se gritos. São as mulheres daquela tribo, que de longe assistem estupefadas. Seus gritos impulsionam seus homens, lembrando-os do legado que defendem: essas mulheres, seus filhos, seus irmãos, sua tribo.
Essa nova infusão de ânimo encoraja aqueles nobres guerreiros, que avançam com mais violência sobre o inimigo.
Os minutos passam, com cada segundo sendo testemunha de golpes e ataques brutais. Os corpos negros se chocam em movimentos frenéticos. Ágeis giros, pés voam na direção do inimigo. Mais e mais corpos em luta. Alguns caem no chão, mas rapidamente se levantam e voltam à batalha. Revidam-se golpes, intensifica-se o conflito.
O sol se movimenta na direção de se esconder daquela peleja. Teme, talvez. Aquela arena, que tantas vezes fora palco de batalhas como aquela, recebe mais feridas em seu solo.
Os homens já não são tão negros assim. A areia do deserto agora cobrem-lhes os corpos, colorindo um tom acizentado aos guerreiros suados.
Enquanto ouvem-se mais e mais golpes, nota-se que o inimigo pouco a pouco se enfraquece. Alguns não mais correm, mas andam, arquejantes, visivelmente abatidos. Não poderiam vencer aqueles bravos homens. Não poderiam vencer os donos do deserto.
De repente, aquele que era o líder dos bravos aponta os olhos ao objeto que os inimigos estavam a defender. Prepara então seu instrumento de guerra. Naquele instante, um seco som se faz ouvir. É o golpe dado pelo bravo guerreiro. O instrumento de guerra levanta voo, subindo até as alturas.
Todos os corpos param. Os segundos são contados com apreensão. Todos os olhos acompanham aquele instrumento de guerra. Seguem-no, apreensivos, todos. As bocas se entreabrem, assustadas. As mulheres emudecem. O vento silencia. O objeto ainda voa no ar. Todos adivinham aonde ele vai dar. Alguns inimigos tentam esboçar uma reação. Mas é tarde demais. De repente, o grito da vitória. Toda a turba que assistia grita em uníssono:
GOOOOOOOL!!!!!
A bola entra certeira próxima ao vértice das traves. Os guerreiros se aglomeram em comemoração. Os que assistiam invadem o campo, bradando. As mulheres pulam, batendo palmas. E o juiz aponta o centro do campo, marcando um gol para o time de Chimoio contra o time de Gondola.

Língua Chona

- Manguanani.
- Uribom?
- Ndiribom.
- Wassuera sei nhamassi?
- Ndassuera bom.
- Ndiwe ani zita raco?
- Ndini Rodrigo.
- Ndacuenda.
- Ndacuenda.

Essa é um modelo de conversação básica em chona, a língua falada em Moçambique nos estados de Manica, Tete e Sofala, bem como em partes de Zambia e Zimbabwe. Comecei a aprender e fico muito chato perguntando pra todo mundo que passa como ele está.

A tradução? Segue:
- Bom dia.
- Tudo bem?
- Tudo bem.
- Como passou o dia?
- Meu dia foi bom.
- Qual seu nome?
- Eu sou Rodrigo.
- Tchau (lt. Estou indo embora).
- Tchau.

Friday, August 21, 2009

O horário moçambicano

Um fato que qualquer estrangeiro nota de primeiro plano sobre o povo moçambicano é a despreocupação com os horários. Devo confessar que não sou a pessoa mais correta em relação a chegar no horário, e até entendo que reuniões possam começar com 15 minutos de atraso, mesmo que eu faça esforço pra chegar no horário. Mas o horário moçambicano, mesmo para mim, causa certo incômodo. Não há meios de fazerem as pessoas chegarem aos compromissos no horário determinado.
Durante os meus dias de adaptação ao fuso horário, com todas aquelas insônias e horas sobrando, resolvi assistir o filme sobre a vida de Albert Schweitzer, que estava na lista de espera há muito tempo. Uma das coisas que ele reforçou sobre o povo africano durante o depoimento inserido no filme era a demora com que os trabalhadores se dirigiam ao local de trabalho e, mais que a demora na saída, a lentidão do percurso. Se você não conhece Africa, vai dizer que é só a visão de um europeu perfeccionista em detrimento de um povo de outra cultura. Mas, de fato, a relação do povo (moçambicano, pelo menos) com o horário, aqui, marca um tópico importante no “choque cultural”.
Minha primeira experiência aconteceu já no meu primeiro compromisso. Uma das minhas atividades na primeira semana seria sair com 2 alunos do projeto pela cidade, a fim de que me fossem mostrados os pontos principais, prédios que eu, em algum momento, irei utilizar, como o hospital, o laboratório, os prédios públicos, comércios, etc.
Pelo tamanho da cidade, soube que o tour não seria tão grande assim. Dessa forma, marquei um outro compromisso de assistir um “juri”, que é o momento em que os professores testam e analisam o aprendizado dos alunos segundo as disciplinas que foram ministradas durante a semana. Seria uma forma de entender o sistema de avaliação, me inteirar sobre as matérias que estão sendo estudadas e ver o desempenho e desenvolvimento dos alunos.
Os 2 alunos vieram me dizer que deveríamos sair às 6 da manhã. Vieram mais tarde, pouco antes de eu ir dormir, reforçando que deveríamos sair às SEIS DA MANHÃ. “Ok” - pensei - “Parece que vou ter que acordar bem cedo amanhã...”. Ora, eu não tenho o adaptador para ligar meu despertador, já que aqui o plug da tomada é diferente. Então fiquei muito atento e antes do sol nascer eu já estava em pé e cheiroso...
O juri iniciaria às 10 da manhã, então daria pra ir na cidade, ver o que tinha que ver e voltar com tempo de sobra para assistir o juri.
Desse modo, comecei o processo de espera.
Depois de procurar os alunos na área comum da escola, lá pelas 6:30 voltei pro meu quarto. Às 8:20 da manhã um dos alunos bateu na porta. “Estamos prontos?”, perguntei. “Não, só vim ter certeza que está acordado. Eu vou mata-bichar (tomar café da manhã) e volto aqui”.
Às 9:00 eu já estava grilado. Putz, o cara me fez acordar antes das 6 da manhã pra sair uma hora dessas! O Bobby, meu project leader, me encontrou naquela hora e disse que seria interessante que eu assistisse o juri que estaria pra acontecer, pois fazia parte das atividades de “reconhecimento” do projeto.
Os alunos só foram estar prontos para sair mesmo às 9:30!!!
Eu já tinha desistido de conhecer a cidade...
Falei pra eles que naquela hora não poderia mais ir, já que o Bobby me solicitou no juri.
Pronto! Isso foi suficiente para ferir os sentimentos de um dos alunos. Eu não deveria fazer aquilo, pois eles acordaram cedo para me levar na cidade (sic!) e então foi que eu, que tinha esperado todo aquele tempo, para não ferir suscetibilidades, pedi desculpas aos alunos e me dirigi ao tal juri.... E, para ter uma idéia do quanto ele ficou ferido, não me levou no outro dia para acompanhar a aula que daria na escola da comunidade. Tive de ir com um outro aluno.
Escrevi isso hoje, mesmo passado todo esse tempo, porque tive outra experiência do gênero poucos instantes atrás.
Hoje seria o dia em que decidiríamos a minha posição no projeto. Para isso, tive uma reunião com o Bobby pela manhã onde, decididos os pontos a serem decididos, eu deveria me reunir com o meu líder de projeto que ficou estabelecido na reunião, o Nicolau, bem como com os professores e com os alunos, a fim de estabelecermos os pontos de trabalho iniciais, etc e tal. A reunião ficou acertada para iniciar às 2 da tarde.
Ás 2 eu dei por encerradas minhas outras atividades e me dirigi à sala determinada. Ninguém. Andei um pouco pela escola, voltei uns 15 minutos depois e... ninguém de novo. Esperei até 2:30 conversando com o Luis e o Thiago, voltei na sala e... ninguém também! Sabedor já do horário moçambicano, fui em busca do meu líder de projeto. Ele estava na sala dos professores decidindo a hora que deveria iniciar a reunião (como assim, caramba?). Me perguntou que horas eu acharia melhor começar a reunião das duas horas... Eu perguntei: “Às 3:00 horas?”. “Três está bom pra você?”, perguntou o professor. Meu amigo, se você mora aqui e começa às 3 a reunião das 2, você tá ótimo! Mas perguntei se não poderia ser às 2:45 hs. Bom de barganha, ficamos assim estabelecidos.
Mesmo assim, no horário estabelecido, outro professor precisou ir chamar os alunos que não tinham chegado pra reunião das duas... E até 3:15 chegavam alunos...
Depois de tanto tempo, ficou evidente na reunião que nenhum ponto de fato importante estava pronto para ser determinado, apenas aquilo que eu tinha trazido do meu planejamento. Decidiu-se, então, que teríamos uma outra reunião na segunda-feira para decidir o que haveria de ser decidido...

Wednesday, August 19, 2009

migalhas lulistas

Lula, quando abre a boca sem que esteja lendo discurso que lhe escrevem, sempre nos dá motivos para rir ou pra chorar. Dessa vez, é motivo pra rir. Notícia que transcrevo do site Migalhas, edição de ontem (porque em Moçambique já são 1:38 am):

"Lula disse ontem que lê pouco nas horas de folga, porque lhe dá sono, e vê muita "bobagem" na televisão. Disse ter um "corpinho elegante", mas reclamou de ter de ir à praia escondido para escapar de fotos : "Eu agora estou lendo o novo livro do Chico [Buarque], 'Leite Derramado'. Passo um pouco da noite lendo, eu não consigo ler muitas páginas por dia, dá sono. E vejo televisão, quanto mais bobagem, melhor para mim. Eu quero é limpar a cabeça", confessou à rádio Tupi do Rio".

Uma visita inusitada...

Hoje recebi uma visita inusitada. Por volta das 10 horas da manhã, uma cobra de pelo menos uns 60 a 70 cm rastejou perto do meu quarto. E não pensem que 70 cm foi o tamanho do meu medo. A cobra passou antes que eu pensasse em descobrir se era venenosa ou não, mas me pareceu que não. Alias, eu estava na proteção do olhar pela janela. Ela passou, toda senhora de si, rastejando pela passarela acimentada que nos leva a cozinha, como um cão que atravessa a rua. A minha reação foi um leve sorriso ao lembrar que eu estava na Africa. Depois de algum tempo os dias vão ficando normais e precisei dessa cobra pra lembrar que vim morar no bush, into the wild... Como n’O Pequeno Príncipe, uma cobra me lembrou que estava na Africa, mas ao contrário do que lhe disse aquela cobra, na minha Africa existem pessoas, não apenas desertos.

Cenário por dentro da janela

Lembro de, em alguma série do primário, ter lido um texto sobre um garoto que queria ser inventor e, com certo espírito revolucionário, esboçou uma casa redonda, se gabando, então, de ter criado algo totamente novo. Foi então que lhe mostraram o joão-de-barro construindo sua casinha circular num galho de uma árvore, ao que foi informado que este passaro assim o fazia desde tempos imemoriais, ensinando o garoto da impossibilidade de viver de rupturas sem se conhecer mesmo que minimamente o passado.
Se eu conhecesse esse menino, o convidaria para conhecer o meu lugar de descanso. Digo lugar de descanso porque não posso chamar de casa. Minha casa mesmo é o mundo e o meu teto é de estrelas, assim como tudo o que tenho cabe numa mochila de 75 quilos (fora o case do meu saxofone).
Mas quanto ao quarto onde descanso e o farei por 6 meses, dada as suas características circulares e arquitetura pouco usual, mereceria a visita do nosso pequeno arquiteto de casas circulares (me refiro ao menino da estória, não ao Niemeyer...). Assim é o meu quarto, conforme descrevo a seguir:
A parede, que na minha terra seria chamada “parede de reboco”, de base circular, formando um cilindro equilátero, “circunda-se” em algo como quatro metros de diâmetro e dois metros e alguma coisa de altura, pintados de branco, por dentro e por fora, com uma tinta à base de cal.
O telhado de palha amarrada forma um cone reto, com vários bambus saindo do vértice do cone em direção a extremidade da circunferência. Essa é a base sob a qual assenta a palha amarrada num estilo moçambicano que me foi explicado por um trabalhador do projeto, formando uma grossa esteira que é jogada sobre os bambus e amarrada no vértice do cone, levemente saliente. Antes, porém, uma lona preta cobre toda a superfície do teto, com vistas a evitar qualquer infiltração de agua nesse aparato de palha, bem como a visita dos insetos que habitam esse tipo de cobertura residencial.
Se você consegue visualizar como isso seria, te deixo dizer que moro numa “oca”.
Dentro, quatro saliências na parede formam as bases daquilo em que foram construídas duas beliches, com caibros, de forma totalmente rudimentar. Quando cheguei éramos quatro a ocuparem todas as camas. O alemão Gerard foi embora, então somos eu numa beliche e o Luis e o Paulo (ambos brasileiros) na outra.
O assoalho é cimentado e pintado de vermelho, donde descola muita poeira durante todo o dia, impedindo o quarto de ter uma limpeza genuína. Uma janela da abrir para dentro com folhas duplas, feita de madeira e com tela para evitar a invasão dos mosquitos da malária, tão comuns por estas paragens.
O quadro se completa com uma mesa de madeira usada para leituras e porta-trecos, com uma cadeira que lhe acompanha, uma estante de palha trançada, uma estante feita de tabuas que aproveita a quina de uma das beliches, uma outra cadeira de palha trançada e, por último mas não menos importante, um bambu amarrado no teto que serve de pau-de-arara para alguns cabides.
O melhor dessa residencia está desenhada na parte de dentro da parede. Por todo derredor algum voluntário anterior reproduziu, com uma notável perfeição artística, alguns dos desenhos originais do Pequeno Príncipe de Saint-Exupery. O mais notável deles mostra o planeta do principezinho, com um broto de baobá e o vulcaozinho no cercado, réplica muito fiel do desenho que consta do Capítulo III do livro. Alem dos desenhos, uma frase tirada do livro: “On ne voit bien qu'avec les yeux du coeur. L'essentiel est invisible pour les yeux”.

Assim se dá o cenário do meu descanso diário...

Em Vez, de Carlos Lacerda

Fuçando a biblioteca do projeto encontrei algumas preciosidades. Dentre elas, a que me chamou maior atenção foi um livro de Carlos Lacerda chamado Em Vez, com uma seleção de textos escritos como discursos políticos, artigos jornalísticos e até homenagens póstumas. Mesmo tendo nascido muitos anos depois e vivendo numa época onde Paulo Coelho é um imortal da Academia, tenho saudade de um tempo na História do nosso país de Gustavo Corção, Mário Ferreira dos Santos, Carlos Lacerda e outros. O prefácio diz bastante sobre a genialidade desse homem que o Brasil se esforça em esquecer. Transcrevo parte deste prefácio abaixo:


"(...) Há várias maneiras de existir. Uma delas é a de se recusar a existir numa competição de mediocridades pressurosas, de concorrências espúrias. Menos espetaculosa do que as outras, exige mais firmeza, dessa espécie rara e difícil das firmezas sóbrias e honradas, que não tiram partido de si mesmas porque visam a, simplesmente, não ceder, não capitular; sem esperar sequer o reconhecimento público dessa difícil capacidade que é a de se abster. É a firmeza do pobre Hamlet, a passar por fútil e por doido, por não ceder às instancias patéticas da mãe trágica e trêfega e do padastro incestuoso. É a firmeza de Socrates, preferindo a cicuta à dobrez da consciência. Quanta coisa podia ele, ainda, dar de si aos contemporâneos, se cedesse um pouco! Mas deu aos pósteros o máximo, com a lição que lhes deixou, única, porém eterna. É a firmeza de quem resiste à tentação do êxito fácil, para deixar claro um princípio; senão aos olhos de todos, desde logo, claríssimo depois, quando assenta a poeira da confusão e se dissipa a temporária névoa dos equívocos. Recorre-se, assim, à linguagem evasiva e sinuosa das alusões e das desconversas. Atinge-se, quando muito, o máximo de futilidade de que pode ser capaz quem não nasceu para ela. Porém, salva-se, nisso, a coerência. E por assim dizer, a honra da inteligência, que não se desfaz com a desconversa intencional e sim com a cumplicidade, mesmo bem intencionada.

Não pactuar com o erro a pretexto de que assim se lhe atenua o efeito deletério, é um ato de firmeza que exige mais contenção, mais coerência, do que o simples protesto ocasional, sem consequencias, logo extinto e logo desfeito por inconsequente, fácil de abafar e ainda mais fácil de ser esquecido.

Enquanto existir uma voz que não pactua, o coro desafina. Se as vozes discordantes de todo se calam, ou falam uma vez só e nunca mais, o coro se torna perfeito, isto é, horrível na sua monotonia, na sua compungida e abjeta submissão.

Em muitos países, em muitas circunstâncias, sobreviver é uma forma de protesto; existir já é, por si só, um modo de dar testemunho. E dar sinal de existência, por sinais sem significado aparente, por palavras e assuntos que nada têm a ver com o da nossa principal preocupação, é um modo viril de não desaparecer na condescendência nem se deixar destruir na fácil exasperação de um só gesto, um só grito, um só momento.

Este é um propósito firme, que exige domínio dos nervos e serenidade da inteligência para não aceitar a provocação de nenhum lado, sob nenhum pretexto, e não sucumbir à tentação da bravata, nem mesmo da própria e autêntica bravura sem consequência. Na minha vida de aprendiz de tantas coisas, já me ocorrera resistir por mil modos diferentes. Faltava-me conhecer esta modalidade rara e realmente muito dificil de ser exercida. A resistencia manifestada simplesmente pela existência.

Existo, logo penso. Enquanto houver quem seja capaz de pensar, nem tudo estará perdido ao acabar a corda que move os engoços, os enguiços, as geringonças, as construções abstratas e abstrusas, fantasiosas mas sem imaginação, de modelos sociais e econômicos dos quais se ausenta o fator que a todos aglutina e dá sentido, que é o fator político – mola mestra de toda sociedade organizada, de toda cultura e, afinal, de toda civilização".

Tuesday, August 18, 2009

Paisagem de interior

Hoje, andando pelas ruas da vila onde moro, lembrava dos versos da poesia matuta de Jessier Quirino, Paisagem do Interior. Se você adicionar as negras vestidas de capulana, com menino amarrado nas costas e bacias de água na cabeça, seria mais ou menos assim: http://www.releituras.com/jessierq_paisagem.asp

Escolinha da vila

Hoje pela manhã fui visitar uma escola pública da comunidade. Aqui todas as escolas possuem como nome alguma data. Então, como não lembro que dia era aquele, vamos dizer que foi Escola Primária Completa 05 de Outubro, em homenagem ao aniversário do meu pai e aniversário da nossa carta constituicional brasileira...
Essa é uma das escolas onde os futuros professores da EPF vão dar aulas em ordem de estágio. Nhama, um dos alunos, deu aula hoje e me convidou para assisti-la. Essa aula ele dividiu com uma colega também da EPF.
A escola, como todas da região, estava numa situação muito precária. As salas faziam parte de uma construção muito antiga, com o teto que indicava poder ter sido algum armazém muitos anos atrás. As paredes davam testemunho dessa ancianidade pelas rachaduras, uma pintura que há muito deixara de desbotar e pedaços do reboco faltando em todo o derredor das mesmas.
As carteiras, daquelas que devem receber duplas de alunos, estavam, em sua maioria quebradas. Os alunos se viram e usam pedaços de outras carteiras inutilizadas, a fim de fazerem o seu assento ou a bancada de livros. Em cada uma que poderia receber assento, 3 alunos se apertavam. Alguns alunos sentavam em apenas um pequeno pedaço de madeira de 5 centímetros de largura, suportado pela armação de alguma cadeira quebrada. Uma aluna que chegou um pouco atrasada sentou mesmo apenas numa armação de outra carteira quebrada, equilibrando-se no canto da carteira sem assento, até que os coleguinhas apertaram e a deram um lugar mais confortável. No fundo da sala, uma coleção de peças de carteiras quebradas dão testemunho de que pouco foi feito para melhorar o conforto dos alunos, amontoadas que estão desde muito tempo. O frio completava a situação de dificuldade. Poucos alunos estavam devidamente vestidos para o frio que faz em Chimoio. A maioria veste roupas já degradadas pelo tempo, em farrapos mesmo. Uma aluna que sentou perto de mim, vestida uma blusa muito fina, tremia durante toda a aula.
As crianças, num total de 20, com faixa etária de 12 a 13 anos, a maioria homens (Moçambique está em processo de emancipação e inclusão feminina, também nas escolas), aprenderam hoje sobre adição de frações no primeiro período de aula. No segundo período viram como funciona o aparelho respiratório e conheceram as partes em que ele é dividido, por meio de um cartaz desenhado pelo professor e apresentado aos alunos. Após o intervalo, interpretaram um texto do folclore moçambicano, que conta a história de uma ave da região chamada “mocho”. A seguir, tiveram aula de artes. Os alunos, apesar da idade, estavam muito comportados e participativos. Nas escolas daqui o aluno, para falar, precisa pedir autorização primeiro, depois se levantar e então expor algo ou responder alguma pergunta. Nessa sala os aluninhos brigavam para responder e a cada pergunta, de pronto, pelo menos 3 ou 4 levantavam as mãos.
Uma professora da escola fica responsavel por avaliar os alunos diariamente. Esse também é o papel dos DI, mas como eu estava só de visita, não fui com essa intenção crítica. De qualquer forma, a professora entrou na sala por 10 minutos, e, talvez motivada pela minha presença, deu muito esporro nos professores estagiários, principalmente pela forma como eles organizaram seu plano de aula. No final ela perguntou se eu tinha alguma coisa pra adicionar, eu elogiei o fato dos alunos estarem muito motivados e participativos e teci alguns elogios sobre a didática dos professores, material didático de apoio, etc. Deixei para fazer algumas críticas mais profundas informalmente, quando estávamos regressando para casa.
No final, foi muito interessante aquela experiência. Pude perceber que mesmo sem muitos recursos e infra-estrutura, os professores da EPF estão sendo capazes de motivar os alunos e dar boas aulas, recebendo uma resposta positiva dos alunos.

Sunday, August 16, 2009

Os vetustos pintores

Hoje fomos visitar as pinturas rupestres de Chinhamapere, no distrito de Manica. Segundo informações da nossa guia, elas possuem 25 a 27 mil anos de existência e são consideradas sagradas pelos moradores da região.
Pegamos uma chapa pela estrada que vai pro Zimbabwe durante pouco mais de 30 minutos, que dividi entra admirar a paisagem e tirar uma soneca. Poucos quilometros após Manica descemos numa pequena comunidade onde deveríamos encontrar as tais pinturas. Além deste escriba, estavam a goiana Grazi, o coreano Moa (meu companheiro de todas as horas), Kuda do Zimbabwe, e a brasileira Isabel, que está em Chimoio dando uns treinamentos para profissionais de saúde.
Antes de subirmos o pequeno monte onde se encontram as pinturas, precisávamos pedir autorização na machamba (pequena chácara), para uma velhinha que se apresentou como descendente dos antiquíssimos pintores. Ali mesmo na sua palhoça ela nos pediu uma pequena contribuição e reclamou que deveríamos tê-la avisado com antecedência da nossa vinda, pois assim ela não estaria de porre naquele momento...
Assim, empreendemos a nossa subida do monte, num corta-mato (atalho) acidentado e cheio de pedras. A velhinha ia num pique impressionante, de deixar o nosso korean soldier pra trás (Moa, nosso amigo da Coréia, como todo conterrâneo, serviu o exército, e possui um preparo físico dos diabos!).
Primeiro visitamos um lugar onde ela nos informou ser onde os antigos cozinhavam cerveja. Depois nos mostrou uma fonte de água que nunca seca, mesmo na pior estiagem. Depois, o lugar de reunião dos antigos produtores de cerveja, onde o fruto do trabalho era, com muita alegria, repartido... Me pareceu mesmo um lugar propício a se tomar um porre...
Então nos voltamos ao clímax da nosso empreendimento, as pinturas rupestres. Antes, ela nos advertiu que não mais poderíamos tirar fotografias, a não ser com autorização dos espíritos. Como nenhum apareceu para dar a deixa, continuamos subindo ao topo do monte, onde estariam as gravuras.
Quando já avistávamos a pedra onde estavam as pinturas, a nossa guia nos pediu para aguardarmos neste lugar e, enquanto tirava os sapatos, nos avisou de que iria pedir autorização aos espíritos. Após alguns minutos ela nos fez sinal para que subíssemos.
Chegamos então às pinturas rupestres. Ainda com um ar reverencial, ela pediu que aguardássemos um pouco mais enquanto fazia uma oração aos espíritos. Tirou um manto amarrado à sua capulana (tipo de vestimenta feminina), cobriu a cabeça, ajoelhou num pequeno altar abaixo das pinturas e disse suas palavras na língua nativa por alguns minutos.
Após este ritual, fomos informados que os espíritos pediam outra contribuição... E lá vamos nós, contando o nosso mirrado dinheirinho de voluntário. Meticais no altar, os espíritos, pela voz de seu oráculo, nos informou que poderíamos tirar fotos. Então a nossa guia nos explicou mais sobre as pinturas, respondeu algumas perguntas e ali nos detivemos por alguma meia hora.
As pinturas retratavam basicamente, segundo nos explicou a senhora, a vida cotidiana daquela comunidade antiga. Ali estavam representados os guerreiros da tribo, outra figura mostrava um grupo de caçadores ao redor da sua presa, mais a frente pudemos identificar um grupo de dançarinos e assim por diante. Algumas gravuras estão impressionantemente bem preservadas. Outras estavam fossilizadas, cobertas de borrões e quase que não se podia visualizar nenhum traço.
Devo dizer que senti uma certa emoção diante daquele testemunho dos tempos pré-históricos. O traçado na rocha que desafiou o tempo e se manteve como sinal de um período do qual pouco sabemos sobre, proporcionando-nos uma visão das mentes daqueles homens, seus costumes e cotidiano, que nenhum outro tipo de material de origem arqueológica permite. Tudo ali, diante dos meus olhos!

Noite passada de marabenda

Ontem aconteceu um evento semanal chamado “Noite Cultural”, onde os futuros professores se reúnem para apresentações, shows, teatros, jogos ou qualquer outra criatividade que lhes advenha. Um DI alemão, o Gerard, que hoje retornou à terra natal, cantou 2 músicas tradicionais alemãs com acompanhamento de um percusionista aluno do projeto. Um jogo interessante que os alunos fizeram foi uma dança que deveria ser feita com todos os pés sobre uma folha de papel que era dobrada ao final de cada música. Cada vez que a música era trocada a folha era novamente dobrada e era então que o moçambicano mostrava toda a sua sensualidade dançando muito, mas muito coladinho...
Outra atividade que aconteceu muito foram dublagens de músicas, feitas por alunos, com muita expressividade artística e alguma graça. As músicas brasileiras dominaram o repertório. Uma, em especial, me reportou à minha terra natal: “Será que foi saudade”, de Zezé de Camargo e Luciano. É Goiás invadindo Moçambique... Além dessa, alguns sucessos da música popular brasileira pós-moderna que você faria muito bem em não me perguntar os nomes...
Após o evento tivemos algumas músicas e danças. Eu arrisquei aprender as danças locais marabenda e passada. Passada é parecida com o forró, mas o “dois pra lá – dois pra cá” só acontece com o quadril, sem mover os pés. Eu teimava em mover os pés, do que fui advertido pela minha “professora” 2 ou 3 vezes, com sua autoridade de mulher moçambicana...
Já a marabenda me lembrou alguns passos de umbanda, o que bastou imitar o que tinha visto antes no Brasil. Não sem que o movimento do meu corpo denunciasse que eu não era nativo.
E assim os estudantes passaram a noite, fazendo a poeira daquele chão batido levantar...

Saturday, August 15, 2009

Brasil pelos olhos moçambicanos

Sempre que digo que sou brasileiro provoco um sorriso. A visão que os moçambicanos têm do Brasil é quase como a de um irmão mais velho. Recentemente libertos da colonização portuguesa, Moçambique deseja caminhar com as próprias pernas o caminho do desenvolvimento e qualidade de vida para o seu povo. Admiram o fato do Brasil ser hoje um país em desenvolvimento (ou desenvolvido, se se comparamos com quaisquer dos países do continente africano) e, inclusive, em vários aspectos, estar à frente de Portugal. Todo o ressentimento que guardam contra os portugueses os fazem olhar para o Brasil como um país a se espelhar.

A admiração se vê nas ruas. É muito comum ver moçambicanos com camisas da seleção brasileira. Novelas brasileiras é programa obrigatório nas tardes de boa parte do povo. Ouvem-se, às vezes, sons da nossa música. E sempre estão a me perguntar aspectos da história brasileira e alguns chegam ao excesso de admirar o nosso presidente (quem disse que tudo eram flores?).

Economia moçambicana

A principal produção do país é agrícola (algodão, cana-de-açúcar e castanha-de-caju). Dessa, a maior parte é agricultura de subsistência (80%). É comum, andando por qualquer rua das cidades e, principalmente, dos povoados, ver-se na frente das casas pequenas barracas onde se vendem a pequena produção familiar, basicamente de frutas, verduras, pães e miçangas.

Apesar de parte do país ter solo desértico, pouco menos da metade desta geografia é apta para a produção agrícola. Acontece que em muitas destas terras foram plantadas minas terrestres durante a guerra civil, que, pelo fato da dificuldade de localização, não foram desativadas e ainda coloca em risco a vida dos agricultores e moradores dos povoados mais afastados.

Além da agricultura, o país extrai a madeira das florestas nativas, bem como trabalha a pecuária bovina, a pesca do camarão e a extração da imensa riqueza mineral do país, consistente principalmente no sal, ouro, diamante e outras pedras preciosas e semipreciosas, além do gás natural e do mármore.

Industrialmente, o país é auto-suficiente na produção de tabaco e cerveja. E as reservas florestais e praias abrem oportunidades ao país em relação à visitação de estrangeiros em busca de contato com a vida selvagem africana.

Friday, August 14, 2009

Leitura que vale a pena

Adauto Suannes é corpo estranho no mar de burrices escritas na net. Um dos melhores cronistas que já li. Essa semana continua detonando:

http://www.migalhas.com.br/mig_circus.aspx?lista=S&cod=90798


Muzungu

Passando pela periferia da cidade ou pelas vilas mais afastadas, é muito comum ouvir o nome “muzungu”. Significa “homem branco” na língua local. Pareço uma criatura de outro mundo. Rapazes vêm conversar comigo, mulheres sorriem e contam alguma piada entre si e as crianças... bem, algumas delas correm de medo, outras correm ao meu redor, e outras vêm pegar na minha mão, voltando heróicas para o grupinho de amigos, em comemoração. Hoje um grupo de crianças me acompanhou por toda a estrada do bairro, até chegar em downtown. Eu tento brincar com elas, tento entabular uma conversa, tento fingir que não vejo. Não tem jeito. Aqui, sou totalmente o outro.

A Favorita

Enquanto escrevo essas linhas, os alunos da EPF estão na sala ao lado assistindo novela brasileira, entre gritos de torcida e reclames de descontentamento pela história que se passa...

Chapa e boléia

Falando em táxi, tinha me esquecido de escrever sobre a “chapa”. Ou escrevi e me esqueci. Como não vou voltar as páginas pra descobrir, digo de novo ou pela primeira vez.

Chapa e boléia foram as primeiras coisas que os voluntários que aqui já estão me contaram sobre Moçambique. Chapa é uma van que faz o transporte urbano, normalmente de uma empresa chinesa (que você pode ver por todos os caracteres chineses que você vê na van), com assento para 15 pessoas, mas que nunca tem menos que 20 passageiros. Normalmente leva de 25 a 30 pessoas.

Boléia é o “jeito voluntário” de ir: a carona. À beira da estrada, pernas à mostra, dedo polegar apontando para a frente no movimento da punheta.

Minha primeira chapa foi em Maputo. Fui ao Shoprite, o Wal-Mart moçambicano. Tem de tudo nessa espécie de mall. De tudo mesmo! E todo tipo de gente, muito estrangeiro e gente cujo fenótipo você não esperava encontrar por aqui. Eu encontrei um daqueles gordos americanos, estoque de hamburguer, cenário interessante num país de tantas privações. Para quem vive cercado pela vizinhança do meu projeto, esse “templo do consumismo” (pra não perder o chatíssimo discurso da New Left) parece uma nota dissonante na melodia do país.

Pois bem, eu dizia que peguei minha primeira chapa. Quando a van parou e fomos informados que iriam na direção do Shoprite, olhei para dentro e hesitei, perguntando: “Tem vaga?”. Torci para que ele dissesse que não, que deveria pegar o próximo. Mas ele disse: “Tem, entra!”. Resolvi confiar naquela voz que denotava tanta experiência no transporte urbano moçambicano. Deveriam ter quase 30 pessoas ali dentro. Eu vi uma vaga entre dois acocorados e subi. Com o “balanço do busão”, ao término da viagem, eu estava de cócoras, com a bunda virada pro fundo da van e a cabeça quase colada no volante. Embaixo de mim uma garota com uniforme de alguma escola. Ao lado do motorista, uma senhora daquelas das ancas gordas e vestida de capulana fazia o meu campo de visão esquerdo. Eu torcia para não espirar por um resfriado que tinha adquirido em South Africa. E assim, alguns 20 minutos depois, fui informado da chegada ao meu destino final.

Respirei fundo e entrei naquele templo do consumismo-capitalista-opressor-desumano-explorador-blá-blá-blá...