"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Wednesday, August 19, 2009

Em Vez, de Carlos Lacerda

Fuçando a biblioteca do projeto encontrei algumas preciosidades. Dentre elas, a que me chamou maior atenção foi um livro de Carlos Lacerda chamado Em Vez, com uma seleção de textos escritos como discursos políticos, artigos jornalísticos e até homenagens póstumas. Mesmo tendo nascido muitos anos depois e vivendo numa época onde Paulo Coelho é um imortal da Academia, tenho saudade de um tempo na História do nosso país de Gustavo Corção, Mário Ferreira dos Santos, Carlos Lacerda e outros. O prefácio diz bastante sobre a genialidade desse homem que o Brasil se esforça em esquecer. Transcrevo parte deste prefácio abaixo:


"(...) Há várias maneiras de existir. Uma delas é a de se recusar a existir numa competição de mediocridades pressurosas, de concorrências espúrias. Menos espetaculosa do que as outras, exige mais firmeza, dessa espécie rara e difícil das firmezas sóbrias e honradas, que não tiram partido de si mesmas porque visam a, simplesmente, não ceder, não capitular; sem esperar sequer o reconhecimento público dessa difícil capacidade que é a de se abster. É a firmeza do pobre Hamlet, a passar por fútil e por doido, por não ceder às instancias patéticas da mãe trágica e trêfega e do padastro incestuoso. É a firmeza de Socrates, preferindo a cicuta à dobrez da consciência. Quanta coisa podia ele, ainda, dar de si aos contemporâneos, se cedesse um pouco! Mas deu aos pósteros o máximo, com a lição que lhes deixou, única, porém eterna. É a firmeza de quem resiste à tentação do êxito fácil, para deixar claro um princípio; senão aos olhos de todos, desde logo, claríssimo depois, quando assenta a poeira da confusão e se dissipa a temporária névoa dos equívocos. Recorre-se, assim, à linguagem evasiva e sinuosa das alusões e das desconversas. Atinge-se, quando muito, o máximo de futilidade de que pode ser capaz quem não nasceu para ela. Porém, salva-se, nisso, a coerência. E por assim dizer, a honra da inteligência, que não se desfaz com a desconversa intencional e sim com a cumplicidade, mesmo bem intencionada.

Não pactuar com o erro a pretexto de que assim se lhe atenua o efeito deletério, é um ato de firmeza que exige mais contenção, mais coerência, do que o simples protesto ocasional, sem consequencias, logo extinto e logo desfeito por inconsequente, fácil de abafar e ainda mais fácil de ser esquecido.

Enquanto existir uma voz que não pactua, o coro desafina. Se as vozes discordantes de todo se calam, ou falam uma vez só e nunca mais, o coro se torna perfeito, isto é, horrível na sua monotonia, na sua compungida e abjeta submissão.

Em muitos países, em muitas circunstâncias, sobreviver é uma forma de protesto; existir já é, por si só, um modo de dar testemunho. E dar sinal de existência, por sinais sem significado aparente, por palavras e assuntos que nada têm a ver com o da nossa principal preocupação, é um modo viril de não desaparecer na condescendência nem se deixar destruir na fácil exasperação de um só gesto, um só grito, um só momento.

Este é um propósito firme, que exige domínio dos nervos e serenidade da inteligência para não aceitar a provocação de nenhum lado, sob nenhum pretexto, e não sucumbir à tentação da bravata, nem mesmo da própria e autêntica bravura sem consequência. Na minha vida de aprendiz de tantas coisas, já me ocorrera resistir por mil modos diferentes. Faltava-me conhecer esta modalidade rara e realmente muito dificil de ser exercida. A resistencia manifestada simplesmente pela existência.

Existo, logo penso. Enquanto houver quem seja capaz de pensar, nem tudo estará perdido ao acabar a corda que move os engoços, os enguiços, as geringonças, as construções abstratas e abstrusas, fantasiosas mas sem imaginação, de modelos sociais e econômicos dos quais se ausenta o fator que a todos aglutina e dá sentido, que é o fator político – mola mestra de toda sociedade organizada, de toda cultura e, afinal, de toda civilização".

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