Em abril, eu previ que Bolsonaro não teria outra alternativa senão participar do pleito municipal paulistano logo no primeiro turno (ao contrário do que ele dizia então) e, ao fazê-lo, Russomano seria a escolha mais coerente. Mas essa servidão presidencial às circunstâncias tem raízes muito anteriores, senão vejamos.
A sinuca de bico presidencial começou a ser desenhada quando os “líderes” aloprados da direita convocaram as manifestações de abril e maio de 2019, a fim de hostilizar o Congresso e o STF. Estes líderes receberam a promessa de que a destruição destas instituições faria surgir um novo modelo de governo, um tal “controle popular das ruas” que por si só bastaria ao presidente para conduzir o Brasil a sua verdadeira vocação. (Na verdade, não houve consenso entre os líderes da direita sobre o “escathon” das ruas. Alguns defendiam, por exemplo, que o fim das instituições traria o retorno da monarquia, e que o governo Bolsonaro seria um “governo de transição”). O único consenso era que a destruição do Congresso e do STF seria seguida de uma terra vindoura onde “manaria leite e mel”.
Pois bem. O prometido “governo das ruas” nunca chegou, mas o clima de insanidade e histeria criado conseguiu produzir duas coisas: a criação de uma CPMI das Fakes News para investigar o uso de verbas públicas no financiamento de ataques a oposição (uma espécie de camisa-de-força para os revolucionários de direita), e a destruição da coalizão congressual governista que elegeu Maia e Alcolumbre, apoiados pelo presidente Bolsonaro, em um acordo que previa que as pautas econômicas do governo seriam aprovadas no primeiro biênio (Maia pautou e fez aprovar, por exemplo, a reforma da previdência que nem FHC, Lula ou o mensalão conseguiram fazer). Deputados bolsonaristas que estiveram na casa de Rodrigo Maia quando da realização deste acordo foram às ruas, hipocritamente, “denunciar Maia e o Centrão”.
Isolado, mal assessorado e sem o apoio do Centrão, Bolsonaro tentou construir novas alianças, e o fez, coincidentemente, com os mesmos partidos que aceitaram temporariamente a Dilma rompida com o PMDB: PSD, PP e PL. Jefferson, que naquele momento parecia agir de forma oportunista (o futuro mostrou que tinha virado um direiteca aloprado também), deu um urro de leão conservador e também encostou no presidente. Para Bolsonaro, no entanto, isso ainda não era uma coalizão suficiente, além de que todos os líderes destes partidos, pela proximidade com o presidente, começaram a ter os seus esqueletos tirados dos armários…
Eu também cantei esta bola. O único grupo político que ganhava espaço com toda a loucura direitista (e a completa desarticulação da esquerda) era os evangélicos (e o braço político do crime organizado, mas este agora não vem ao caso). Bolsonaro acabou por filiar os dois filhos cariocas no Republicanos e já sinalizou apoio a Crivela ali mesmo, em março/abril.
Naquele momento, o projeto político da direita bolsonarista já havia sido destruído pelo racha irresponsável com o PSL e pela farsa da criação do Lambança Pelo Brasil, a ideia “brilhante” de fundação de um “partido cientificamente conservador” (cuja definição nunca foi explicada), onde os maiores intelectuais conservadores e os melhores especialistas em direito eleitoral construíram uma aliança para, juntos, esquecer de checar o prazo procedimental de criação de um partido...
Uma vez no colo dos evangélicos, Bolsonaro articula a montagem da chapa do Republicanos em São Paulo, trazendo um vice do PTB para compor com Russomano. O candidato, que começava a desidratar, volta a crescer timidamente nas pesquisas, mantendo-se abaixo dos 30%. Acontece que os eleitores que Bolsonaro “transfere” são de perfis muito parecidos com os eleitores de Russomano (jovens de periferia, baixa escolaridade) e essa intersecção pode ter apenas o efeito de consolidar os números de Russomano do início do ano.
Mas, diferentemente do Rio, onde Crivela está liquidado (quase 60% de uma rejeição cristalizada desde 2019 e um marketing que tem criado dissonância cognitiva no eleitor), em São Paulo existe uma chance de vitória para Russonaro. Historicamente (de 2000 a 2016), um prefeito que busca a reeleição e tem a avaliação de Bruno Covas (28% de ótimo e bom), tem 12% de chance de vitória (para se ter uma ideia, nunca um governador com estes números tão baixos foi reeleito). Para vencer, Bruno precisa acentuar a rejeição de Russonaro no segundo turno, fazendo uma campanha negativa.
Veja que o ingresso de Bolsonaro no pleito alterou algo importante. Antes, Bruno pretendia repetir o fenômeno de Doria em 2016: a estratégia era esfriar o processo político para que o alto número das abstenções garantisse uma vitória no primeiro turno. Para isso, o COVID caiu como uma luva, já que a quarentena manteria candidatos e eleitores em casa o máximo de tempo possível, e uma campanha nas redes nunca teria a penetração e o engajamento suficientes.
Bolsonaro pode conseguir que um candidato sem consenso partidário, sem recursos e sem trabalho de base seja levado ao segundo turno. E, a julgar pelos números de Bruno, vai ser uma disputa acirrada. É como uma luta de dois japoneses para ver quem tem a piroquinha maior. Bruno tem muita grana para o pleito, mas sua avaliação é baixa e, para complicar, o PCC proibiu o PSDB de entrar nas comunidades. Russomano tem os 15% de transferência de Bolsonaro e uma baixa rejeição, mas é só. Em qualquer outra circunstância, ambos estariam em maus lençóis.
Mas a pergunta é: uma administração Russomano vai ser bolsonarista ou só servirá para “destruir os planos do Doria”? (Afinal, por incrível que pareça, Bolsonaro tem mesmo preocupação com o projeto presidencial de Doria. Nenhum assessor do presidente consegue perceber que Doria não será candidato a presidente e informar isso ao “Jair”. Imagine que o Doria puxe uma pesquisa em abril de 2022 e se veja ali com 5% de intenção de votos para presidente e 30% para governador, ele vem a presidente ou a reeleição?)
Se eu tivesse que cravar, diria que, se eleito, Russomano virará as costas para o presidente na primeira oportunidade. E não fará isso por maldade, necessariamente, mas porque entrou num acordo mal costurado com um presidente totalmente desgarrado. Sem contar que os efeitos das eleições municipais serão terríveis para o presidente e ele estará muito enfraquecido para cobrar qualquer coisa de Russomano. Mas isso é assunto para outro momento…