Capítulo de O Livro da Certeza, de Martin Lings (Abu Bakr Siraj ad-Din)
“Dir-se-á: ‘Ó alma tranqüila!
Retorna a teu Senhor, agradada e
agradável;
‘Então entra para junto de Meus
servos’,
‘E entra em Meu Paraíso!’”
Alcorão, Surata 89: 27-30
O título de "servo" implica aniquilamento, e é em virtude disto que
aqueles que alcançaram o Jardim do Coração são chamados de ‘os servos de Deus’.
No entanto, este titulo pertence, acima de tudo, àqueles que
foram extinguidos na Essência; e isto é usado em seu sentido mais elevado no
Capítulo do Homem, onde a distinção é feita entre os servos de Deus e os justos
(al-abrar), os quais adquiriram
perfeita retidão na medida em que possuem em seus Corações os reflexos das
Qualidades Divinas, todavia não tendo ainda alcançado a Verdade. Estes são os
que puseram os pés na Escada de Jacó, que é o eixo luminoso de todo o Universo
criado, desde este mundo até o lótus na extrema fronteira.
“Por certo, os justos beberão de uma taça cuja
mistura é de cânfora, uma fonte de que os servos de Allah beberão, fazendo-a
emanar abundantemente”. Alcorão, Surata 76: 5-6
Comentário: “Os justos são os bem-aventurados que transporam os véus da
vida virtuosa e das boas ações e que, agora, estão velados com os véus das
Qualidades. Todavia não se contentarão com isto, mas anseiam sair do Mundo das
Qualidades em direção à Fonte da Essência, até a
Eternidade. Estes são os que estão na metade da jornada. Eles bebem da taça do
amor da Beleza das Qualidades, todavia não apenas isto, uma vez que esta está
temperada com o deleite do amor à Essência, e
este amor não é outro senão a Fonte de cânfora, o Concessor do deleite que
consiste na bonança da certeza, na alvura da iluminação e no regozijo e
fortalecimento do Coração que foi consumido pela paixão do anelo. Deveras, a
particularidade da cânfora é que tranqüiliza, alegra e é branca. E kafur é a fonte onde bebem um esboço
puro dos servos de Deus. Estes são os Seus escolhidos, o povo da Solidão da
Essência, cujo amor pertence à Fonte da Essência sem as Qualidades, na medida
em que eles não fazem distinções entre coação e amor benevolente, piedade e
crueldade, julgamento, destituição e prosperidade, mas possuem um amor abnegado
mesmo em face das oposições, e os seus deleites persistem quer diante de graças
ou aflições, benignidades ou opressões... No tocante aos justos, por outro
lado, apesar de amarem o Doador da Graça e o Amor Benevolente e o
Misericordioso, ainda assim, diante da manifestação do Opressor, do Acusador e
do Vingador, o amor daqueles não permanece, e nem mesmo o deleite, que se
transforma em asco. Eles o jorram em
correntes copiosas na medida em que os mesmos, ou seja, os servos de Deus,
são as próprias nascentes da Fonte, uma vez que aí não existe dualidade ou
alteridade. Fosse ela outra coisa que não cânfora, haveria a escuridão negra do
véu do ego individual e da dualidade”.
Os justos são
novamente mencionados no Corão, como bebendo de uma taça cujo sabor é advindo
da Fonte da Essência, mas dessa vez o sabor vem de Tasnim, um outro aspecto da
Fonte:
“Dar-se-lhe-á de beber licor puro, selado, cujo selo é de almíscar – e
que os competidores compitam, então, para isso – e sua mistura é de Tasnim, uma
fonte de que os achegados a Allah beberão”. Alcorão, 83: 25-28.
Daqueles que são trazidos para perto é dito no Capítulo do
Acontecimento, em respeito ao que eles bebem, que isto não os assombram (Corão,
56:19). O comentador diz: “O discernimento destes não é perdido na embriaguez,
nem a inteligência ou a perspicácia ficam submersas. Deveras estes são um povo
sóbrio, que não estão velados pela Essência das Qualidades (afinal, são servos
de Deus); de outra maneira, seriam cativos da embriaguez e oprimidos por sua
condição (hal).” Assim,
diferentemente dos servos de Deus, estes que são trazidos para perto podem
distinguir entre as Qualidades e a ausência delas. Porém, apesar dos justos
fazerem esta distinção, eles não possuem a iluminação suficiente para perceber
com clareza que as Qualidades são véus entre eles e a Luz da Essência, enquanto
que aqueles que foram trazidos para perto estão do outro lado do véu. Deste
modo eles não podem dizer que viram a Extrema Majestade do Majestoso e a
Extrema Beleza do Belo, ou é aquele escondido pelo outro como no caso dos
justos, ou ainda aquele que não pode falar sobre nada como “outro” uma vez que
ultrapassaram toda alteridade.
O que é chamado Kafur em respeito aos servos de Deus e sua morte, e a
sua embriaguez (sukr), é chamado
Tasnim em respeito àqueles que foram
trazidos para perto e da Eternidade apos a morte e das suas sobriedades (sahw). Mas aqueles que são trazidos para
perto também bebem de Kafur e são os servos de Deus, e os servos bebem também
de Tasnim e estão “próximos”, e ambos são os Amados.
Podem se dizer
dos justos que sempre que as suas faces estão voltadas em direção a Verdade na
Sua Unidade, as suas invocações, invocações e intuições estão perfumadas com a
Canfora de Kafur, e que sempre que as suas faces estão voltadas em direção a
Verdade enquanto Ele, o Eu Eterno de todas as coisas, em Quem absolutamente
nada pode ser perdido, as suas meditações, invocações e intuições estão
perfumadas com o Almíscar de Tasnim e de Kauthar. Ainda sobre beber diretamente
da Fonte, eles sabem que ninguém pode beber de Tasnim se ainda não tiver bebido
de Kafur.
A falta de uma
medida comum entre o justo e o Amado é encontrada expressa nos versos dos quais
o Capitulo da Luz recebe este nome:
“Deus é a luz dos céus e da terra. O exemplo da Sua luz é como o de um
nicho, em que há uma lâmpada. A lâmpada está em um cristal. O cristal é como se
fora astro brilhante. É aceso pelo óleo de uma bendita arvore olívea, nem de
leste nem de oeste; seu óleo quase se ilumina, ainda que o não toque fogo
algum. É luz sobre luz.”
O tabernáculo é
a terra, ou seja, este mundo. Ou, em respeito ao microcosmo, a alma, a qual, em
si, é escura. A primeira parte da jornada espiritual se assemelha a colocação
da lâmpada, ainda sem óleo, no tabernáculo. O vidro da lâmpada, reluzente como
um planeta que reflete a luz, é o Coração, e assim a alma é iluminada com a luz
do Olho da Certeza. A segunda parte da jornada se assemelha com o encher a
lâmpada com o óleo da benção, e a oliveira bendita de onde o óleo é extraído é
o próprio Espírito. Não é nem de leste nem de oeste em virtude da sua
centralidade e sua exaltação: um aspecto semelhante àquele do lótus que está na
fronteira extrema. Mas no fruto de ambas, assim como no fruto da tamareira, o
cerne da individualidade permanece. Há, agora, luz sobre luz, a luz do óleo
sobre a luz do vidro, a luz do Sol do Espírito sobre a luz da Lua do Coração.
Esta é a situação dos justos, mas a lâmpada ainda deve ser acesa.
“Deus guia a Sua luz a quem quer. E Ele propõe aos homens, os exemplos.
E Deus, de todas as cousas, é Onisciente.” Corão, 24:35.
Tradução: Rodrigo Morais