"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Saturday, February 14, 2015

A Caravana de Verão

Capítulo de O Livro da Certeza, de Martin Lings (Abu Bakr Siraj ad-Din)


“Dir-se-á: ‘Ó alma tranqüila!
Retorna a teu Senhor, agradada e agradável;
‘Então entra para junto de Meus servos’,
‘E entra em Meu Paraíso!’”
Alcorão, Surata 89: 27-30

O título de "servo" implica aniquilamento, e é em virtude disto que aqueles que alcançaram o Jardim do Coração são chamados de ‘os servos de Deus’. No entanto, este titulo pertence, acima de tudo, àqueles que foram extinguidos na Essência; e isto é usado em seu sentido mais elevado no Capítulo do Homem, onde a distinção é feita entre os servos de Deus e os justos (al-abrar), os quais adquiriram perfeita retidão na medida em que possuem em seus Corações os reflexos das Qualidades Divinas, todavia não tendo ainda alcançado a Verdade. Estes são os que puseram os pés na Escada de Jacó, que é o eixo luminoso de todo o Universo criado, desde este mundo até o lótus na extrema fronteira.

“Por certo, os justos beberão de uma taça cuja mistura é de cânfora, uma fonte de que os servos de Allah beberão, fazendo-a emanar abundantemente”. Alcorão, Surata 76: 5-6

Comentário: “Os justos são os bem-aventurados que transporam os véus da vida virtuosa e das boas ações e que, agora, estão velados com os véus das Qualidades. Todavia não se contentarão com isto, mas anseiam sair do Mundo das Qualidades em direção à Fonte da Essência, até a Eternidade. Estes são os que estão na metade da jornada. Eles bebem da taça do amor da Beleza das Qualidades, todavia não apenas isto, uma vez que esta está temperada com o deleite do amor à Essência, e este amor não é outro senão a Fonte de cânfora, o Concessor do deleite que consiste na bonança da certeza, na alvura da iluminação e no regozijo e fortalecimento do Coração que foi consumido pela paixão do anelo. Deveras, a particularidade da cânfora é que tranqüiliza, alegra e é branca. E kafur é a fonte onde bebem um esboço puro dos servos de Deus. Estes são os Seus escolhidos, o povo da Solidão da Essência, cujo amor pertence à Fonte da Essência sem as Qualidades, na medida em que eles não fazem distinções entre coação e amor benevolente, piedade e crueldade, julgamento, destituição e prosperidade, mas possuem um amor abnegado mesmo em face das oposições, e os seus deleites persistem quer diante de graças ou aflições, benignidades ou opressões... No tocante aos justos, por outro lado, apesar de amarem o Doador da Graça e o Amor Benevolente e o Misericordioso, ainda assim, diante da manifestação do Opressor, do Acusador e do Vingador, o amor daqueles não permanece, e nem mesmo o deleite, que se transforma em asco. Eles o jorram em correntes copiosas na medida em que os mesmos, ou seja, os servos de Deus, são as próprias nascentes da Fonte, uma vez que aí não existe dualidade ou alteridade. Fosse ela outra coisa que não cânfora, haveria a escuridão negra do véu do ego individual e da dualidade”.

Os justos são novamente mencionados no Corão, como bebendo de uma taça cujo sabor é advindo da Fonte da Essência, mas dessa vez o sabor vem de Tasnim, um outro aspecto da Fonte:
“Dar-se-lhe-á de beber licor puro, selado, cujo selo é de almíscar – e que os competidores compitam, então, para isso – e sua mistura é de Tasnim, uma fonte de que os achegados a Allah beberão”. Alcorão, 83: 25-28.

Daqueles que são trazidos para perto é dito no Capítulo do Acontecimento, em respeito ao que eles bebem, que isto não os assombram (Corão, 56:19). O comentador diz: “O discernimento destes não é perdido na embriaguez, nem a inteligência ou a perspicácia ficam submersas. Deveras estes são um povo sóbrio, que não estão velados pela Essência das Qualidades (afinal, são servos de Deus); de outra maneira, seriam cativos da embriaguez e oprimidos por sua condição (hal).” Assim, diferentemente dos servos de Deus, estes que são trazidos para perto podem distinguir entre as Qualidades e a ausência delas. Porém, apesar dos justos fazerem esta distinção, eles não possuem a iluminação suficiente para perceber com clareza que as Qualidades são véus entre eles e a Luz da Essência, enquanto que aqueles que foram trazidos para perto estão do outro lado do véu. Deste modo eles não podem dizer que viram a Extrema Majestade do Majestoso e a Extrema Beleza do Belo, ou é aquele escondido pelo outro como no caso dos justos, ou ainda aquele que não pode falar sobre nada como “outro” uma vez que ultrapassaram toda alteridade.

O que é chamado Kafur em respeito aos servos de Deus e sua morte, e a sua embriaguez (sukr), é chamado Tasnim em respeito àqueles que foram trazidos para perto e da Eternidade apos a morte e das suas sobriedades (sahw). Mas aqueles que são trazidos para perto também bebem de Kafur e são os servos de Deus, e os servos bebem também de Tasnim e estão “próximos”, e ambos são os Amados.

Podem se dizer dos justos que sempre que as suas faces estão voltadas em direção a Verdade na Sua Unidade, as suas invocações, invocações e intuições estão perfumadas com a Canfora de Kafur, e que sempre que as suas faces estão voltadas em direção a Verdade enquanto Ele, o Eu Eterno de todas as coisas, em Quem absolutamente nada pode ser perdido, as suas meditações, invocações e intuições estão perfumadas com o Almíscar de Tasnim e de Kauthar. Ainda sobre beber diretamente da Fonte, eles sabem que ninguém pode beber de Tasnim se ainda não tiver bebido de Kafur.

A falta de uma medida comum entre o justo e o Amado é encontrada expressa nos versos dos quais o Capitulo da Luz recebe este nome:
“Deus é a luz dos céus e da terra. O exemplo da Sua luz é como o de um nicho, em que há uma lâmpada. A lâmpada está em um cristal. O cristal é como se fora astro brilhante. É aceso pelo óleo de uma bendita arvore olívea, nem de leste nem de oeste; seu óleo quase se ilumina, ainda que o não toque fogo algum. É luz sobre luz.”

O tabernáculo é a terra, ou seja, este mundo. Ou, em respeito ao microcosmo, a alma, a qual, em si, é escura. A primeira parte da jornada espiritual se assemelha a colocação da lâmpada, ainda sem óleo, no tabernáculo. O vidro da lâmpada, reluzente como um planeta que reflete a luz, é o Coração, e assim a alma é iluminada com a luz do Olho da Certeza. A segunda parte da jornada se assemelha com o encher a lâmpada com o óleo da benção, e a oliveira bendita de onde o óleo é extraído é o próprio Espírito. Não é nem de leste nem de oeste em virtude da sua centralidade e sua exaltação: um aspecto semelhante àquele do lótus que está na fronteira extrema. Mas no fruto de ambas, assim como no fruto da tamareira, o cerne da individualidade permanece. Há, agora, luz sobre luz, a luz do óleo sobre a luz do vidro, a luz do Sol do Espírito sobre a luz da Lua do Coração. Esta é a situação dos justos, mas a lâmpada ainda deve ser acesa.


“Deus guia a Sua luz a quem quer. E Ele propõe aos homens, os exemplos. E Deus, de todas as cousas, é Onisciente.” Corão, 24:35.


Tradução: Rodrigo Morais

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