"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Tuesday, December 18, 2012

Introdução ao livro O Dinossauro, de Meira Penna


Primeira parte da Introdução ao livro O Dinossauro, de J.O. de Meira Penna. Leitura obrigatória!


"O mundo evolui e a humanidade se transforma, enquanto sofre uma das mais profundas crises da história. Podemos repelir algumas das novidades que a civilização tecnológica moderna nos proporciona. Podemos temer, com razão, sua destruição cataclísmica. Seu suicídio. Mas temos sempre que enfrentar a realidade do moderno, o que quer dizer do futuro na prenhez do presente. O futuro está aberto e a história é imprevisível. O futuro é sempre criado, é sempre novo, sendo o risco o preço da mutação evolucionária.
Até princípios deste século, os que se negavam a aceitar as transformações aceleradas da realidade contemporânea eram tidos como "conservadores". Eram em geral autoritários. Monarquistas em matéria política. Eurocêntricos e encontradiços em círculos abastados, de uma certa idade e educação. Às vezes racistas e antissemitas. E concentravam-se em grande número no seio da Igreja católica. No Syllabus dos erros da civilização contemporânea, Pio IX colocou Roma fortemente do lado da reação conservadora, ainda escarmentada pelas sequelas da Revolução francesa. Pio X condenou oficialmente o "modernismo" na encíclica Pascendi, de 1907. As catástrofes políticas da primeira metade do século confundiram as questões entre o progresso e o conservadorismo, entre o avanço criador e a estagnação reacionária, substituindo a alternativa por uma falsa dicotomia político-ideológica de esquerda x direita —— produto intelectual espúrio do romantismo jacobino de 1793 e 1848. Agora, no final desta centúria e deste milênio, creio que uma nova e mais esclarecida perspectiva se impõe, graças à qual contemplamos a paradoxal reversão de posturas filosóficas, obediente ao mecanismo contraditório da dialética da razão.
Com efeito, eis o paradoxo: os intelectuais de esquerda que se autointitulam "progressistas" são hoje "ecologistas" e os maiores inimigos das transformações que o mundo moderno nos propõe. Inversamente, os mais leais seguidores da clássica Filosofia Perene são aqueles que mais abertos se declaram, mais se arriscam diante das alternativas geradas pelo Moderno. Do mesmo modo, os chamados teólogos da libertação, longe de promoverem a liberdade, o desenvolvimento e o progresso, fazem uma opção preferencial pela pobreza do passado colonial, recusam-se a aceitar as propostas imperativas de controle da natalidade, atêm-se à velha estrutura do clericalismo autoritário e paternalista —— como se sua intenção fosse recriar a república teocrática dos guaranis. O milenarismo dos deserdados constitui a velha promessa compensatória para aqueles maniqueístas que são incapazes de arrostar os desafios de um mundo tecnológico que se transforma e deixa para trás os inadaptados, os ignorantes, os preguiçosos, os seguidores passivos de lideranças carismáticas, os que perderam o bonde do Moderno.
Vejam: os "progressistas" admiram a União Soviética e o socialismo, quando são os Estados Unidos a nação que carrega o futuro. A URSS é o último abencerrage do absolutismo monárquico, do imperialismo territorial, do nacionalismo vieux jeu que aspira à autarquia econômica e à hegemonia política. O socialismo é a receita da estagnação, a última expressão da "religião civil" como nostálgica memória de uma organização coletiva, fortemente comunitária, onde não devam reinar os imperativos darwinianos evolucionistas de concorrência e luta pela vida. Longe de ser a filosofia insuperável pretendida por Sartre, é o marxismo a mais obsoleta versão do romantismo antieconômico, antimonetário, anti- industrial do século XIX. Nesse sentido, talvez tenham razão os teólogos marxistas quando acreditam, como anunciava Nietzsche, que o socialismo seja a versão secularizada de um Cristianismo supostamente em decomposição. Estará Marx mais perto de Pio IX, Pio X e Paulo VI do que podemos imaginar? De qualquer forma, o totalitarismo nacional-socialista empaca na alternativa de uma cristalização e arcaização definitiva do indivíduo num tipo de sociedade fechada, uma sociedade de massas coletivizada, como uma formigueira ou uma termiteira. Mas será isso o que nos anuncia o futuro?
Na vida internacional, de fato, continuará presumivelmente, por longo tempo, a coexistência mais ou menos pacífica entre o Ocidente democrático, livre, pluralista e aberto, e o sistema soviético fechado, opressor, militarizado e esclerosado. Entretanto, todos os povos, mesmo aqueles que mais detestam a América, se americanizam. Aron está certo quando postula: "a paz impossível, a guerra improvável". Os dois mundos irão talvez conviver, como o império romano conviveu durante século com Parthas e Sassanidas, sem solução do dissídio. Certo: os terceiro-mundistas torcem pela vitória do nacional-socialismo marxista mas apostam errado e é isso, precisamente, o que compromete a mitologia que preside à política externa brasileira. Mais cedo ou mais tarde, os que sentam em cima do muro pagarão caro a sua miopia ou a sua covardia. O mundo moderno não comporta a postura da avestruz.
Mas se o totalitarismo reacionário constitui um desafio ao Ocidente, um desafio que indubitavelmente exigirá um esforço de imaginação para superar as nossas deficiências e injustiças —— do outro lado da Cortina o confronto apenas confirmará os comunistas nas suas formas peculiares de tirania, de brutalidade, de estagnação econômica e de atraso cultural. No cenário internacional, de novo, apenas reflete a intelligentsia que se intitula de "esquerda" o obsoletismo de suas convicções filosóficas.
Não podemos saber o que será o mundo do século XXI. Contudo, é lícito antecipar que as forças de transformação mais enérgicas da época contemporânea conduzem a um universo cosmopolita, mul-ti-racial, ecumênico, pluralista, de interdependência cultural, integração política democrática e economia de mercado dominada pelas grandes corporações multinacionais. A ideologia do Estado-nação soberano deve ser superada. Tudo indica que o modelo de desenvolvimento experimentado na área do Atlântico Norte (com uma sucursal no Extremo-Oriente) é o modelo do futuro —— precisamente porque é o modelo mais liberal, mais polêmico, mais dinâmico, mais imprevisível, mais contraditório. Diante da "sociedade exemplar" ocidental, o Terceiro-Mundo é o resquício folclórico do passado autoritário pré-moderno, a imagem pré-histórica da Idade da Pedra, o último vagão de carga de um trem da história cuja locomotiva trafega em algum lugar entre Milão e Londres, entre Nova York e Los Angeles, entre Tóquio e Singapura. O homem do século XXI mais se parecerá com um pedestre da Fifth Avenue, dos Champs Élysées ou da Avenida Paulista, do que com um caçador de cabeças da Nova Guiné ou um cacique de xavantes do Mato Grosso. O atual Terceiro Mundo fornecerá quiçá os elementos imaginativos, estéticos, emocionais e religiosos que serão elaborados no século XXI, mas a elaboração se processará no Primeiro Mundo!
É interessante destacar os sintomas da nostalgia folclórica dos que resistem ao "choque do futuro" —— as fantasias do complexo de retorno ao ventre materno daqueles mesmos que se consideram os machistas do "progressivismo". Com a energia do desespero na mitologia romântica do Bom Selvagem procuram os motivos para suas elucubrações saudosistas. Detrás da crítica à cultura moderna, naquilo mesmo que ela obedece à Filosofia Perene do Ocidente, está o desejo de fazer tabula rasa. Mas representa essa revolução em última análise, pela própria força das chamadas "leis dialéticas", um retorno ao passado, uma revolução a uma ordem petrificada, arcaica e cristalizada. A única revolução válida é aquela que, pela reforma dos costumes, institucionaliza a liberdade dentro da ordem. Novus Ordo Saeclorum... O verdadeiro revolucionário é aquele que, obediente às lições do passado transmitidas na áurea catena da Filosofia Perene, se sustenta em sua autonomia moral e em sua responsabilidade racional. O progresso se dirige, como queria Weber, no sentido da racionalização do comportamento, mas também da introjeção do imperativo ético. A lei impressa na pedra passa a ser gravada no coração.
A esquerda é crítica por definição e se a crítica da cultura constitui elemento indispensável de todo avanço, o ímpeto criador do homem não é, também por definição, suscetível de classificação ideológica. O homem criador explora o desconhecido, avança no imprevisível, liberta o indeterminado. O homem criador arrisca-se. Lança-se na liberdade de todo constrangimento no momento mesmo em que se ergue sobre o pináculo da cultura. O desafio prometeano ao poder da natureza, a penetração luciferiana nos segredos da Teodiceia são as alavancas que, a partir do pensamento ocidental —— greco-judeo-cristão —— transformam o mundo. Na transmutação de todos os valores, o próprio Nietzsche enfatiza a constância da cultura, centrada no indivíduo, no homem singular. A esquerda crítica não terá outro papel senão o de apontar para os erros ou descarrilamentos dos criadores, que tomam riscos precisamente porque enfrentam os enigmas e penetram às cegas nas brumas do porvir. Avançar é arriscar. A esquerda crítica é como um eunuco: pretende saber como se faz, mas não pode... Em suma, a ideia mais revolucionária é a ideia mais antiga do Ocidente, é a mais moderna e a ideia do futuro, a que surgiu entre os profetas hebraicos, aquela que está no centro da mensagem de Cristo e se desenvolveu no pensamento de Sócrates e de Platão: o homem é um ser livre e moralmente responsável. Como dizia Kant, não pode ser um meio porque é um fim em si mesmo. Não pode, portanto, ser um escravo do Estado.
O futuro não pertence aos supostos "progressistas" marxistas, social-estatizantes, terceiro-mundistas e nacional-socialistas. O futuro pertence aos que pensam e intuem. Pertence aos inventores e inovadores, "àqueles que não repetem velhos chavões, aos que não aderem a partidos, não seguem ideologias mas se lançam para o desconhecido, seguros em sua fortaleza moral. Este o manifesto de um mal chamado liberalismo conservador, cujo objetivo imediato é reduzir o poder do Estado burocrático.
A Liberdade, já assinalava Benjamin Constant, "nada mais é do aquilo que os indivíduos têm o direito de fazer e o que a sociedade —— entenda-se, o Estado —— não tem o direito de impedir"."

No comments:

Post a Comment