"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Monday, October 5, 2009

Essas coisas de política...

O evento de comemoração ao acordo de paz foi, digamos, sui generis. Não tanto para um moçambicano, talvez. Mas aqui é interessante notar como qualquer ajuntamento se transforma rapidamente num comício político do partido Frelimo. Antes de tudo, estranhei o fato de que nenhum outro partido político, exceto a Frelimo, tinha enviado representante. Note-se que o evento era uma comemoração do acordo firmado entre a Frelimo e a Renamo, pondo fim à guerra. Por uma questão óbvia, era de se esperar a presença de representantes de todos os grupos envolvidos na assinatura do acordo. Além disso, como estamos no período eleitoral, nada melhor para qualquer partido do que se mostram em eventos públicos, dizendo do seu passado e presente interesse na paz e, aliás, votem em mim nas próximas eleições... Ou seja, o não comparecimento só pode ter duas razões: ou a Renamo sofre da falta de um bom marqueteiro político que a incentive a participar de eventos públicos a fim de ser “vista” pela população, ou a Frelimo não convidou a Renamo com o objetivo de, como de fato aconteceu, transformar o evento num comício.

O apresentador do evento, inclusive, vestia uma camiseta vermelha da Frelimo por baixo de um terno branco. Quando anunciou o discurso do governador, disse que este iria, além de discursar, ensinar ao povo, naquela momento, a real história do acordo. Não preciso dizer que o governador usou o momento do discurso para recontar a história sobre a perspectiva da Frelimo...

Vale dizer que a Renamo não tem teve mesmo uma influência grande na democratização e no fim da guerra. Aconteceu que Moçambique era uma das “questões de honra” do regime socialista soviético durante a guerra fria. A URSS apoiou a Frelimo na guerra da independência e patrocinou o regime socialista moçambicano, como fizeram ambas as nações envolvidas na guerra fria (EUA e URSS) a fim de mostrar, respectivamente, a superioridade (pelo número de adesões) do capitalismo ou do socialismo.

Assim, com o declínio do regime soviético, Moçambique sofreu um forte impacto econômico e, em 1987, o presidente Joaquim Chissano apelou para o apoio do Banco Mundial e do FMI, que condicionaram a ajuda ao abandono do socialismo e o fim da guerra civil. Democracia, pluripartidarismo e livre-mercado foram decorrências óbvias.

Nessa época de eleição, pode-se notar como o debate político é escasso na região. Isso, segundo notícias de outras províncias, aliás, é um problema no país todo. O fim da guerra civil não trouxe uma democracia efetiva, onde o cidadão tem acesso à informação e pode debatê-la. Aqui, a Frelimo domina não apenas o aparelhamento estatal, mas também interfere em outras instituições sociais.

Professores, nas escolas da província, são obrigados a se filiarem ao partido. Claro que é uma compulsoriedade tácita. Aquele professor que não faz é rechaçado pelos outros e não galga posições de direção na escola, além de ter a carga horária reduzida. Para montar um negócio, qualquer que seja, precisa da autorização do partido. Agem, em relação ao partido, como faziam os antepassados para com o líder da tribo. Tudo deve ser feito sob os auspícios do grupo político no poder, a Frelimo.

Algumas pessoas temem os líderes políticos como temiam os chefes das tribos. Os chefes sempre eram associados aos curandeiros e exerciam o poder por, além do uso da força, meio de magias que atemorizavam os aspirantes a opositores. Um aluno do projeto me contava, certo dia, que Samora Machel fora um grande líder porque era feiticeiro, fazia magias e mandava os espíritos matarem seus opositores. Contava isso, aliás, de um modo reverencial ao ex-presidente.

Além desse poder – digamos – arquetípico, a História ensinada nas escolas é totalmente (totalmente mesmo!) tendente ao partido no poder. Recentemente li um livro de História de Moçambique escrito por um grupo de professores do curso de História da Universidade Eduardo Mondlane, a maior universidade do país. O livro tinha o mesmo teor de um panfleto político. Nem um pouco mais, nem um pouco menos. Não apenas contava a história pelo ponto de vista do partido, como fazia verdadeiros chamados à nação de apoio ao partido que lutou pela libertação do país. Um colega DI me disse que o livro de História da 5ª classe ensina as técnicas militares usadas pela Frelimo durante a guerra, descrevendo cada técnica em todos os mínimos detalhes, que só interessariam a algum aspirante na escola das forças armadas moçambicana.

Ora, é claro que todos esses fatos históricos são muito recentes. Não se pode falar nisso aqui sem o ressentimento, sem a dor, sem o trauma. A visão do panorama histórico do país ainda é turva aos olhos dos moçambicanos. Toda a análise histórica e todo debate político é marcado não apenas pela paixão, mas pelo forte trauma da guerra, cujos heróis e vilões são nomeados pelo partido no poder.

À guisa de exemplo, pergunte a um moçambicano o que ele achava das antigas machambas comunitárias. Estas eram uma das formas como ocorria o socialismo do governo Frelimo antes do fim da guerra. Como em qualquer sistema socialista, os meios de produção pertenciam ao Estado. No caso das machambas, as pessoas hoje vão dizer que “aquilo não funcionava”, que poucos trabalhavam de verdade e, no final, os preguiçosos ganhavam a mesma quantidade de comida que os que tinham trabalhado arduamente. Vão dizer também que o governo distribuía à população apenas a “verdura seca” e o “tomate podre”, enquanto a boa comida ficava nas mãos dos líderes.

Mude, então, a pergunta, para saber da mesma situação das machambas comunitárias. Agora, pergunte como era a política de produção agrícola do partido Frelimo antes da democratização? Ao ouvir o nome Frelimo, a mesma pessoa vai louvar aquele período numa descrição que te lembrará o século de Péricles na Grécia Antiga. Vão dizer que o partido cuidava de todos, que todos eram gordinhos e felizes, et cetera e tal...

Eu presenciei um fato da mesma natureza, durante um júri feito 3 semanas atrás. Júri é o momento no curso de formação de professores onde os alunos apresentam alguma forma de avaliação com o fito de mudar de módulo. Um aluno falou sobre a democracia moçambicana e causou muita irritação no professor que fazia a avaliação juntamente comigo. Antes, eu elogiei aquela como uma das mais bem feitas que eu tinha visto, quiçá a mais bem feita. O aluno fez uma análise da transição dos tipos de governos em Moçambique desde o tempo dos grandes impérios e reinos africanos, passando pelo governo colonial, o socialismo e, então, a democratização. Ainda teceu interessantes críticas à própria democracia moçambicana, ainda imatura, comparando com outras democracias, inclusive com a democracia ateniense. Ótimo!

Pois bem, o professor, num exercício de duplipensar (ou novilíngua, como preferir), se exaltou na defesa da Frelimo, dizendo que antes do fim da guerra (ou seja, antes da democracia e pluripartidarismo) a democracia moçambicana era melhor que a atual democracia, que existia apenas um partido e não essa bagunça de pluripartidarismo, onde todo mundo debate sobre tudo. Não bastasse chamar o socialismo de democracia, para dar mais força à sua idéia, o professor ainda afirmou que na época dos reinos e impérios também existia democracia, já que o imperador possuía um conselho de anciões que lhe aconselhava. Monarquia e socialismo por democracia, o importante era ter respeitado o tempo em que a Frelimo “reinou” soberana.


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