"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Friday, December 25, 2009

The Great Zimbabwe!

A grama do vizinho é mesmo mais verde. Para quem se acostuma com o cenário da savana moçambicana, o Zimbabwe se mostra um pedaço do paraíso. Moçambique tem sim as suas belezas naturais, mas o Zimbabwe...
A cidade de Chimoio fica a 40 minutos da fronteira e foi graças a ineficiência tecnológica africana que eu precisei ir ao Zimbabwe finalizar a compra da passagem de avião que vai me levar para um feriado no outro extremo da Africa.
Se eu tivesse que aparecer com qualquer motivo dessa diferença entre os dois vizinhos, a guerra civil moçambicana que destruiu as matas e expulsou a vida selvagem, a ineficiência da colonização portuguesa e o atual descaso do governo e da população seriam os meus preferidos para apontar o lado lusófono da fronteira.
A savana do vizinho, por outro lado, é muito preservada. O cenário realmente muda exatamente na fronteira. Enquanto estamos na província de Manica, as casas são de barro e telhado de palha, nas matas predominam grandes clareiras e é muito dificil cruzar com pelo menos um macaco pelo caminho.
Assim que se recebe o carimbo no ultimo posto moçambicano e cruzamos uma cerca para uma sala com a foto do presidente-ditador Mugabe e um oficial de fronteira com cara de quem não dá a mínima se você não fala shona te manda preencher direito uma ficha para requerer o visto zimbabuano, começamos a ver macacos andando na cerca, javalis um pouco mais à frente e os pássaros são muito abundantes.
Carimbo no passaporte, tentamos escapar dos tipos mais assustadores de animais selvagens, os chamados cambistas, que oferecem dólares por meticais insistentemente. Sobreviventes, pegamos um táxi para Mutare, a cidade mais próxima. Por essa palidez de turista milionário, os taxistas querem cobrar 15 a 20 doláres. Mas eu tinha um trunfo. A minha primeira ida no Zimbabwe foi acompanhada pelo meu amigo e co-worker no projeto, o zimbabuano Kuda. O aumento de melanina garante o preço de apenas 3 dólares.
O cenário até Mutare é muito bonito. Além da vegetação bastante densa e muito verde e dos animais, acompanha a beira da estrada uma infinidade de esculturas com motivos africanos em pedra (serpentine stone). São as pedras que dão nome ao país. Em shona, dzimba dza mabwe significa “grande casa de pedra”.
Mutare é o total oposto de Machipanda, a cidade moçambicana da fronteira. Ao invés de casas de barro, um centro provinciano bem mais, de certa forma, moderno, com muitos carros e alguma pressa. Na estação de onibus, muita gritaria dos cobradores nos convencendo a entrar nas vans para Harare (e ali também chamam van de chapa, como em Moçambique). Um mais afoito pega minha bolsa para levar para a sua van e só consigo parar o feliz quando dou um grito ríspido dizendo para ele “calm down” (sossega a piriquita, para os íntimos...).
Deixamos ali o burburinho e fomos buscar um outro lugar para pegar um ônibus grande, porque Kuda diz que tem as pernas muito compridas e não consegue andar de van (!).
Mas acho por bem dar um salto na história, porque a primeira viagem ocorreu normalmente, com a exceção dos inúmeros animais que eu via da janela do onibus e até um bando de zebras, logo quando entrávamos em Harare.
A segunda viagem, que aconteceu nesse domingo, me deu uma visão melhor do país devido a algumas circunstâncias.
Eu deveria ter ido no sábado com o Kuda. Iria acontecer uma cerimônia tradicional na família e eu fui convidado. Era a chamada morte do boi. Quando um noivo casa, ele dá para a familia do pai da noiva um boi que, depois de certo tempo, conforme a tradição, é morto e comido por todos os familiares. O boi da familia Denga, depois de mais de 20 anos de espera, soube então que seria saboreado naquele domingo pelos familiares.
Mas por motivos alheios à minha vontade (sic, ou – devo dizer – burp!), não pude sair de Chimoio no sábado e então o Kuda foi comer o boi e eu deixei pra ir no domingo mesmo...
Ainda em Chimoio foi uma luta para a van sair. Uma coisa engraçada por aqui é que os onibus não tem um horário determinado para zarpar. Sai quando lota. Enquanto isso o motorista espera até certo tempo na “paragem” e então começa uma ronda pela cidade tentando convencer as pessoas a ir para o destino... Eu já tava com muita pressa, porque não queria chegar muito tarde em Harare. Mas não adiantaram os protestos. Lá algumas 2 horas depois o motorista resolveu sair.
Chegando em Manica, uns 15 minutos da fronteira, o sacana nos informou que tinha umas entregas a serem feitas na cidade. Perguntou para os passageiros remanescentes se isso era problema, como se tivéssemos a opção de escolher.
Depois de muita entrega, o cara resolveu que não ia pra Machipanda e eu tive sorte de encontrar uma outra van que estava indo naquela hora, ao invés de precisar clamar pelos meus direitos de consumidor. Aliás, direitos do consumidor por aqui é uma coisa totalmente inexistente (e, pelo que percebi depois em passagem pela Etiópia, vi que isso se extende por boa parte do continente). Um mito, verdadeira lenda urbana. Os prestadores de serviços, quaisquer que sejam, sempre deixam muito claro como estão fazendo um favor para o cliente e nunca – que eu tenha visto – um serviço é prestado com qualidade. Além disso, como aconteceu nesse caso também, sempre cobram muito caro pelo serviço se você tem pouca melanina na pele. Se você tem dinheiro sobrando, com o tempo se cansa e acaba alimentando o vício e pagando o preço exorbitante. Mas se você é voluntário e tem que economizar, precisa pedir pra ser considerado pessoa ao invés de branco.
Finda a praxe burocrática na fronteira, lá vamos nós na direção de Harare.
No caminho até a capital, a primeira coisa que incomoda o viajante é a interrupção continuada de policiais de trânsito durante todo o percurso. Além dos normais pedágios cobrados a fim de contribuir para os cofres de Mugabe, pelo menos de 15 em 15 minutos somos parados por policiais que pedem propina aos motoristas. Logo na saída de Mutare, o motorista, na ânsia de lotar o carro, voltou à estação para procurar mais clientes e foi parado por 2 policiais que tomaram os documentos do veículo e só liberaram quando o motorista contribuiu para a ceia de Natal daquelas autoridades. E assim foi durante todo o trajeto.
Um pouco mais à frente presenciei uma consequência da hiperinflação zimbabuana. Com vistas a conter uma inflação que chegou a 9.000.000% ao ano (isso mesmo, com essa tanto de zeros!), o presidente congelou os preços, mandou prender os comerciantes que desobedecia essa ordem e causou um desabastecimento geral de mercadorias, o que fortaleceu o mercado negro no país.
Ali pelo caminho, então, o nosso carro precisou de diesel e em nenhum lugar foi possível encontrar. Então, de repente, o motorista saiu da estrada e entrou num atalho camuflado por entre a vegetação. Uns 45 minutos depois chegamos numa casa no meio do mato, onde estava sendo vendido diesel sem o conhecimento do líder máximo daquela nação. Enquanto isso, o meu colega de poltrona tentava me explicar, muito envergonhado, a situação precária do país e os motivos do tão distante diesel. Era sua segunda vergonha naquela noite, pois já tinha sido vexado ao me explicar sobre o caso da propina aos policiais que faziam hora com os documentos do carro e nos impedia a viagem.
Até voltarmos ao caminho de Harare, o único inconveniente real foi a histeria de uma moça que jurava ter ali leões perigosos. Não resisti a piada de dizer para ela aproveitar o safari por aquele preço camarada.

Harare é uma cidade bastante moderna. O centro da cidade mistura a arquitetura londrina com prédios mais recentes e até uma torre com motivos “futurísticos”. Era ali onde a Inglaterra pretendia criar a capital da New England, o mesmo mote da colonização norte-americana. Harare, por sinal, significa, em shona, “cidade que nunca dorme”, um dos títulos tambem de New York City.
Antes da colonização, a região foi palco e sede de grandes impérios africanos, como o reino de Mapungubwe e o reino de Monomotapa, além do reino de Rowzi, todos assentados sob a etnia maShona. O fim desses impérios e reinos são eventos ainda muito recentes na História. Só em meados do século XX é que a Inglaterra consegue ter o controle de todo aquele território. É recente e toda aquela grandeza de alma e orgulho como povo ainda está muito arraigado no coração dos maShonas.
Muitos ingleses se mudaram para a região durante a colonização, que iniciou em 1890, ocupando principalmente a área rural e praticando a agricultura. Em 1980 foi proclamada a independência e desde então o poder está na mão de um único homem, Robert Mugabe.
Mugabe recebeu muitos títulos honorários ao redor do mundo durante a luta pela independencia do Zimbabwe, inclusive o título de Cavaleiro da Ordem da Cruz concedido pela rainha da Inglaterra. A maioria desses títulos hoje estão revogados, inclusive seus cursos de direito em algumas universidades americanas. Ainda assim, sempre que vai ser referido por algum órgão de mídia zimbabuana, antes do nome aparece alguma coisa como Sua Excelencia o Honorável Camarada Secretário-Geral Engenheiro Advogado Comandante das Forças Armadas, Sr Presidente Robert Gabriel Mugabe. E a frase continua mais ou menos assim: "disse hoje, em sua sabedoria, que..."

Outra coisa interessante que notei assim que entrei na região metropolitana é que as pessoas plantam em todos os lugares. Todos os lugares mesmo. Inclusive no espaço destinado à calçada, entre a rua e as casas ou prédios, se tiver terra, as pessoas estão plantando. Em morros, terrenos baldios, qualquer lugar é lugar de plantio. E cada um tem seu espaço, seu quadrado, e ninguem colhe na parte do outro.
Apesar do governo com todas as feições ditatoriais e toda a propaganda que daí decorre, eu senti um inconformismo bem generalizado. Diferentemente do povo moçambicano, que vivem uma forte impressão de que possuem uma democracia e se sentem felizes e conformados com os rumos do país, em Zimbabwe, pelo menos com todas as pessoas que conversei (à exceção do Kuda, que ama Mugabe), sempre sobra uma sensação no zimbabuano de que a situação precisa mudar. E, se lemos a história do país, parece que os tempos atuais estão melhores que os passados. Mesmo assim, todos com quem conversei, por mais que eu tentasse mostrar que a situação nos outros países estava ruim também, me diziam que o Zimbabwe deveria estar melhor e a culpa é do governo mesmo.
Uma situação que prejudica o crescimento econômico e aumenta muito os preços é a falta de moeda local. O governo adotou o dolar zimbabuano, mas a inflação fez com que chegassem à casa dos trilhões de dólares. Mugabe então iniciou um processo de impressão de dolares zimbabuanos e compra e armazenamento de dólares americanos que surgiam no país. A oposição conseguiu então que o dolar local deixasse de ser impresso e a moeda adotada passou a ser o dólar americano.
Acontece que praticamente todo o dólar que chega é de ajuda financeira externa americana (os Estados Unidos, coisa que ninguém gosta de dizer, é o país que mais envia ajuda externa aos países pobres). É interessante: nem nos EUA se vê tanta nota nova, inclusive de 100 doláres. Mesmo em Chimoio, quando vamos trocar meticais por dólares, sempre aparecem notas muito novas. No início eu desconfiava, conferia muitas vezes para ver se eram falsas. Não, são mesmo notas verdadeiras, do Tesouro Americano. Fui trocar alguns meticais com um cambista e ele não tinha nenhuma nota pequena, apenas notas de 100 com poucos dias de manuseio. Foram notas que usei no aeroporto de Cairo, em bancos em Cairo, no Zimbabwe, e foram conferidas também por funcionários destes bancos. Conversando com uma inglesa que mora em Harare e veio ao meu lado no aviao para Cairo, ela me dizia que todo esse dinheiro vem da ajuda externa, principalmente do próprio Federal Reserve.
Além de usar o dólar americano, outro problema é que não existe moedas de centavos americanos. Então, os preços de coisas com valores pequenos são todos aumentados para alcançar o dólar. Uma bolacha, uma pipoca, um parafuso e uma cerveja têm o mesmo preço de 1 dólar. Comprei 6 bananas por 1 dolar, um preco que nenhum lugar dos Estados Unidos cobraria. E no mercado convencional, onde os centavos garantem o lucro do empresário, usa-se a moeda sulafricana, o rand, como forma de dividir o dólar nas suas partes centesimais.
E nessa historia de trilhoes de dolares, algo sobrou para mim. Finalmente, depois de uma vida inteira de trabalho, eu consegui o meu primeiro bilhao de dolar. Na verdade, uma nota de 20 bilhoes de dolares. Como alegria de pobre dura pouco, a nota nao dava pra comprar nem uma banana.

Finalizando, apesar dos pesares, Zimbabwe me pareceu um país muito à frente de Moçambique. Eles parecem incorporar o lema do país, “Unidade, Liberdade e Trabalho”. Não se ouvem lamentos de fraqueza por terem sido colonizados, não colocam os brancos em pedestais como os únicos capazes de ficarem ricos. Muito pelo contrário, o povo zimbabuano é muito trabalhador. Nas ruas do centro da cidade, na área administrativa, muito trânsito de pessoas indo e vindo do trabalho, muita pressa e trabalho por fazer.
Também não vi divisão por questão de cor física. Da parte da população, nenhum problema com brancos, indianos ou chineses que vao ali ganhar dinheiro, montar negócio, negociar, investir e criar empregos. Como disse um amigo quando perguntei sobre racismo e agressão contra brancos em Zimbabwe, ele disse que, nesse tempo de crise, o povo está mesmo é preocupado em trabalhar e ganhar dinheiro. Se alguém propor alguma agressão contra outro por cor ou raça, o máximo que vai ouvir é: “Come on, man, get a life!”

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