"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Friday, December 25, 2009

O fim é o começo – parte doce

CAMINHO
"Bem no fim do caminho, como flor
Esquecida de alguém,
Encontrei o começo."
(José Reis)


Exatamente uma semana atrás aconteceu a graduação dos estudantes da EPF. No dia seguinte a maioria deles já sabia em que região da província estarão indo trabalhar. Alguns já estão nestes rincões. A ADPP tem um convênio com o Ministério de Educação do país, que indica as áreas de maior necessidade de professores e se compromete a contratar todos os graduados, todo ano.
Eu não acredito que seja esse o meu momento de comentar sobre esse evento. Em outro tempo, quem sabe, quando eu tiver saído do projeto, estiver no Brasil ou em algum outro lugar e pensar nisso com calma, poderei explicar o turbilhão de pensamentos sobre o que aconteceu aqui na EPF desde que cheguei, todas as experiências que vivi e as contribuições – se existiram – que deixei aos alunos que por aqui passaram nesse ano.
Conheci alunos excepcionais aqui. Professores não do futuro, mas do presente. Pessoas que nasceram com o dom de aprender e de ensinar e sob outras circuntâncias e com a inteligência que possuem, estariam galgando posições de destaque em qualquer sociedade, qualquer cidade ou país. Muitos deles ainda têm essa possibilidade. São novos, apenas precisam do apoio, da voz que diga que tudo é possível, basta lutar contra os nossos gigantes, a maioria dentro de nós mesmos.

Faço uma referência respeitosa principalmente aos meus alunos Pacule e Finiasse. A vontade de aprender, a busca, mesmo com as dificuldades - que todos temos - no caminho, mesmo ouvindo de alguns palavras de desincentivo, eles (ambos) tinham um sorriso de canto de boca e na outra oportunidade faziam melhor. Vão ser excelentes professores e poderiam ser qualquer outra coisa que quisessem. Finiasse sempre sorria das minhas broncas, não um sorriso sarcástico, mas aquele de quem descobre um novo jeito de fazer alguma coisa. E conversar com o Pacule sempre me fazia sentir que valeu a pena ter vindo, que eu realmente contribuí com alguma coisa para a educação desse país.

Foi numa conversa com o Pacule que eu aprendi algo de verdade. Porque aprender por ler ou ficar sabendo por ouvir dizer é uma coisa. Aprender de verdade é quando a coisa entranha, o verbo se faz carne. Aprendi que os nossos maiores gigantes, nossos maiores desafios estão dentro de nós mesmos. Não adianta culparmos o nosso nascimento humilde, a corrupção do governo ou a posição dos astros quando do nosso nascimento. Ouvindo ele falar de si mesmo, eu lembro que muitas vezes dei essa mesma desculpa para me deixar ser derrotado. Ele me dizia que os alunos reclamavam que não tinham livros suficientes na biblioteca, que não tinham computadores suficientes e que não havia tempo suficiente para estudo, por isso tantas notas baixas. Eu perguntei em quantas escolas de todo o país de Moçambique haviam bibliotecas, em quantas tinham computadores e em quantas os alunos moravam, comiam e dormiam na escola. Ele me olhou, pensou e disse: “é, acho que o problema está em nós mesmos...”. Vencer a nós mesmos, aos nossos medos, é o nosso maior desafio. Sem desculpas, sem justificativas. É fácil apontar os defeitos e problemas em tudo o que nos cerca. Mas olharmos para nós mesmos inicia um processo de justificativas que não tem fim, a não ser que decidamos deixar de enganar a nós mesmos. E as opções para se integrar em qualquer grupo de excluídos é infinita: latino, negro, nordestino, mulher, homossexual, colonizados, não ter habilidades “x”, não ter graduação “y”. A vitrine oferece várias máscaras para nos escondermos de nós mesmos.

E se eu continuar falando sobre aprendizados por mais linhas do que estas, vou ser obrigado a reconhecer que eu levo mais desses alunos do que propriamente trouxe para eles. Eu ganhei mais do que dei e, no final, tenho que decidir não pensar nessa troca em termos do que é justo ou injusto.
Viver nessa pequena comunidade de Nhamatsane, nas dependências do projeto, com esses alunos, me ensinou coisas para a vida toda, porque o meu próprio eu foi objeto de ensino.
Aí habita o problema do convívio com o diferente. Viver com iguais é confortável principalmente porque massageia o ego. Ouvir, ver e reproduzir sempre os mesmos jargões de nós mesmos, dos nossos iguais, é uma afirmação constante de nós mesmos, da nossa própria beleza. É narcisístico. Nosso sotaque, nossas idéias, nossas tradições, nossos chavões, tudo isso dão testemunho de como especiais nós somos, de que nosso jeito de ser “é uma tradição de há séculos”, como dizia Pessoa.
Então, um dia, você se vê no convívio do diferente, do totalmente estranho e novo. E isso é repugnante. Sim, essa é a palavra mesmo. Daí surgem os motivos de racismo e xenofobia. O diferente é repugnante. Mas acontece que a raiz dessa repugnância é muito discreta. E pode nos fazer pensar que repugnante é o próprio outro. Bem, é aí que mora o engano. O repugnante, na verdade, somos nós mesmos. O outro aparece como um espelho que mostra a nossa própria imagem caricaturada, com defeitos acentuados de forma esdrúxula. O diferente nos obriga a pensar sobre nós mesmos, sobre quem e o que somos. Sem o suporte da masturbação mental nascisística, nós nos achamos no beco-sem-saída da nossa própria imagem, da nossa pergunta sobre nós mesmos.
E o povo com o qual vim morar, nessa simplicidade de vilarejo, são mestres da eloquência em suas ações e jeitos de ser. Tudo é exagerado, retumbante. Se é uma discussão, tem de haver gritos. Se é alegria, que hajam mais gritos ainda. Se é festa, cubram os tímpanos. Se é formalidade, eles são ao extremo. E a aula de “self interior” vai se dando assim, em gestos e ações muito exageradas. Se hoje vamos falar de preguiça, eles passam o dia inteiro sem fazer nada. Se hoje a aula é sobre trabalho, eles passam o dia inteiro na machamba. Se a aula é sobre vida simples, eles vivem apenas com o que plantam no fundo do quintal. Se é sobre a alegria de viver, mesmo em meio a dor, eles fazem as melhores festas e dão os mais belos sorrisos. Tudo aqui é erótico e dionisíaco. Ao mesmo tempo, tudo é de uma contrição da qual eu já até falei em outra postagem anterior.
E assim, nesta barulhenta estranheza e diferença, eu fui aprendendo muito sobre eu mesmo e até resolvi questões existenciais de alguns anos. Claro que isso é assunto apenas para o meu analista, se eu tivesse um...

Enquanto terminava estas últimas linhas anteriores, me veio à mente um momento da formatura que nunca vou esquecer. Um grupo de alunos foram à frente e cantaram uma música muito linda agradecendo à EPF e aos formadores por terem dado a eles a oportunidade de se formarem professores. No final da música era repetido várias vezes a palavra “obrigado”, enquanto eles se dirigiam para fora do salão. Eu estava próximo à porta de saída naquele momento e eles vieram cantando na minha direção. Todos aqueles que foram meus alunos, ao passarem por mim, acenaram e disseram “obrigado”. Eu brinquei, dizendo “de nada”, mas meu coração estava em prantos de emoção. E não posso evitar as lágrimas ao lembrar disso. E lembro de ouvir do Thiago naquele dia que, mesmo sendo tão pouco, aquilo já é muito. Sim, para quem não tem nada, uma gota mata a sede...
Agora, findo o meu trabalho, é o deles que começa.

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