"Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem".
Alberto da Cunha Melo

Tuesday, September 8, 2009

O Robinson africano

Fora uma noite tribulosa aquela. Desde o ocaso viam-se nuvens negras se aproximando no horizonte, tomando, pouco a pouco, o controle de toda a abóbada celeste, cortada, periodicamente, por feixes luminosos que piscavam naquele manto negro. O capitão dissera, com aquele piscar do olho direito que lhe era particular, que aquela seria uma noite daquelas... Mandara sua tripulação preparar o barco para a noite que começava. Esteve, sim, deveras preocupado. Deveria aportar em Lourenço Marques nos próximos 3 dias, naquela que aparentava ser uma viagem rápida e tranquila. Vinha da cidade de Bombaim, donde transportara alguns produtos alimentícios, principalmente especiarias, que davam muito lucro ao mercado português.
Já estava aposentado de 40 anos no mar. Ainda aceitava aquele tipo de trabalho fácil para ajudar na manutenção de casa. Aquela viagem, em especial, lhe renderia ótimos lucros no mercado de Lourenço Marques. Viagem simples, rota segura. Conhecia o Oceano Índico como ao quintal de sua casa. Desde que era um garoto e começara naquele navio negreiro. Mas não gostava do negreiro. Sua consciência lhe dizia que não correto escravizarem os negros. Mesmo que eles não fossem totalmente humanos, apenas selvagens, como ouvira o padre dizer na missa. Mas mesmo se fossem animais, pensava. Dizia isso porque lembrara de como gostava do cão de sua mãe, um mastif inglês de cor beje e jovialidade que fora perdida por anos deitado a correntes. Alias, fora do mastif que lembrara quando vira o primeiro negro, acorrentado ao pescoço, ser embarcado naquela sua primeira viagem. Os negros também são criaturas de Deus, Vossa Santidade. Não, não ousara dizer isso ao clérigo. Padre é homem de Deus, sabe o que diz. Mas, mesmo assim, lá no fundo, não concordava. Porém, não matutava muito sobre isso.
De qualquer forma, deixara o negreiro assim que conseguiu que suas economias lhe permitisse o acesso ao navio a que dedicara sua vida. Aquele sim, era um navio que lhe dera orgulho. Começara como imediato e galgara ao posto de capitão do navio. Apesar de navegar sobre a bandeira portuguesa, sendo ele um italiano. Os portugueses pagavam melhor e não tinham bons marinheiros como ele. Duvidava se alguém amava o mar tanto quanto ele. Sim, senhor. Isso que o fazia tão bom marinheiro. Era o amor que sentia por aquela vida, um flutuar macio sobre as águas do oceano. Um dia, quando criança, ouvira o padre dizer sobre o paraíso, sobre morar no céu. Pra ele, o céu de que falava o padre era como o mar. Viver flutuando. Tão macio como só vivem os reis. No timão, se sentia o rei do oceano, embaixador de Poseidon.
E, agora, suas preocupações se mostraram fundadas. Aquela tempestade estava se tornando a mais forte que jamais vira. As ondas batiam no casco do barco, jogando a forte embarcação de um lado a outro, descontrolada. O motor roncava veloz, mas com um frustrado som que indicava não mais ter o controle sobre aquela embarcação. Num esforço heróico, um tripulante alimentava a fornalha com um carvão já totalmente encharcado pelas águas daquele temporal. Outros homens gritavam ordens de comando, sons que eram abafados pelo brado enfurecido do deus dos mares. Outros, ainda, corriam pelo convés, na esperança de conterem cordas, bagagens e barris que eram arremessados pela fúria do vento. Enquanto isso, o barco se chocava com cada imensa onda que se levantava em sua direção, qual leve casca de noz. Alguns homens, em desespero, pulavam do barco. Outros eram mesmo arremassados contra a vontade. Uma vez no oceano, as ondas rapidamente engoliam os seus corpos exaustos. Gritos continuavam a ser ouvidos nos intervalos dos golpes das ondas chocando-se com o casco. A derrocada daquela máquina naval era evidente.
O capitão apenas olhava todo o espetáculo infernal. A serenidade sexagenária estampada no rosto sabia que pouco poderia ser feito, a menos que a tempestade diminuisse. Também não tinha forças para enfrentar a tempestade lá fora. Restava rezar. E era o que fazia, na sua mente. Rezava, lamentava pelos seus homens e pensava num saída.
Foi quando avistou um luz. Longe, bem longe, tremulava um pequeno clarão que não era um raio. Tinha certeza também que não era uma estrela. Lembrara de onde deveria estar. Pelo tempo da viagem, só poderia estar perto daquele farol. Como não pensara nisso antes? Aquela era a cidade de Beira, onde tantas vezes aportara para descansar de uma dura viagem. Cidade que sofrera muitos ataques das tribos dos negros do interior do continente, mas que continuara sob o dominio portugues, que se esforçava tanto para te-la, sabedor que era da posição estratégica daquela região.
A mesma luz irradiou toda a esperança naquele velho coração. Abriu a porta da sua cabine e correu ao homem do leme. “Quarenta e cinco graus a estibordo, a todo vapor!”. O grito contagiou o tripulante que, desde algum tempo, desistira de controlar o leme. Aquela efusão de ânimo e confiança o deu força para cumprir as ordem do seu capitão.
O barco ainda teimava em sobreviver diante de toda a fúria daquela tempestade. De forma cambaletante, obedeceu ao novo comando do leme. Os poucos homens que restaram entenderam a manobra. Alguns viram a mesma luz, distante. Gritos de esperança brotaram de lábios trêmulos. E o barco se dirigiu rumo a luz salvadora.
De repente o capitão se sente sem forças. Uma tontura, uma fraqueza. Sente-lhe faltar as forças. Empreendera muito esforço para chegar até o leme. Fora um luxo que não poderia ter tido, mas sabia que isso salvaria a vida dos poucos amigos que ainda sobrevivera. Sem mais forças para pensar sobre isso, vê tudo ficar mais escuro ainda. Mas este escuro agora era por dentro da retina. Era o escuro da sua mente que apagava. Desmaiou.
Poucas horas se passaram até que o barco alcançara a praia. Um som seco indicou que o barco navegava outra superfície que não a água do mar. Adentrava a praia. De repente pára. Os olhos do capitão se abrem. Já era dia. A maré começava a baixar. O céu ia ficando limpo. A bem poucos metros do barco ele vê o farol que os salvara. Agradece aos céus.
Passados alguns instantes, vê seus homens gritando de alívio e agradecendo pela vida. Ele resolve sentar e observar aquela euforia, com um leve sorriso de quem vê os filhos a brincar numa poça de lama. Poucos minutos depois, homens correm em direção ao barco. Perguntam, ouvem respostas, gritam, levantam as mãos aos céus em desespero. Outros aparecem, carregam nos ombros as poucas mercadorias que restaram. Outros carregam corpos dos seus amigos. Um outro – este ele acompanha com maior interesse – carrega o seu corpo. Sim, era ele mesmo que ali ia sendo carregado. Reconhecera a farda de capitão e a barba e cabelos grisalhos. Mas ele não se importava mais com o próprio corpo. Queria mesmo era ficar ali, no seu barco, no barco do qual era o capitão. Nunca mais sairia, pois sabia que aquele era o seu lugar.
Se dirigiu então ao castelo de proa. Era sua parte preferida do barco. Era ali que ficava a contemplar o oceano nos dias de calmaria, aquele manto que dividia as extremidades do horizonte com o céu cheio de nuvens.
Sentado no castelo, se sentiu novamente o rei do mar. Os homens vinham e iam. Às vezes vinham crianças brincar no barco. Mas sempre saiam no final da tarde, quando a maré subia. Parte do barco ficava coberto de água. Mas ele dali não arredava. Era o dono, senhor daquele guerreiro do Índico, que acabara a batalha tão bravamente. Sentia orgulho ao lembrar daquela peleja entre seu barco e o furioso Poseidon. Ao deus fora difícil vencer o pequeno e valente guerreiro...
O tempo foi passando. Vez por outra, alguma negra trazia seu sinhozinho para banhar naquela praia. Eles sempre queriam subir no barco, mas eram impedidos pelas preocupadas mucamas. Outras vezes vinham um bando de negrinhos, trepavam no barco, faziam algazarras, banhavam pelados no mar e voltavam correndo para as suas casas.
Sempre via companheiros de navegação passar ao largo. Se dirigiam ao porto. Outros, barcos pesqueiros, menores que o seu, aportavam numa comunidade a poucas centenas de metros dali. Vendia-se e compra-se peixes.
O tempo passava. Já não sabia mais quantos anos ali estivera. Sem sentir frio, sem sentir calor, cansaço ou fome. Apenas ele e seu barco. Suficientes.
Um dia, ouvira um alvoroço. Os portugueses saíam apressados em barcos, carregando o que podiam. Pelas conversas que conseguiu ouvir, soube que tinha sido declarada a independência da nação de Moçambique. O lugar não mais pertencia a Portugal. Era terra dos negros. Ora, afinal errara o padre. São, sim, homens, os negros. Via-os, agora, a passear pela praia, com a cabeça erguida e, no olhar, aquele orgulho próprio de quem reconhece em si mesmo a humanidade.
Homens continuaram vindo e indo. Roupas diferentes, cores diferentes, idiomas diferentes.
Essa manhã, que lhe aparentava ser um sábado, viu vindo um grupo de jovens. Reconheceu o idioma português, mas com um sotaque diferente. De qualquer modo, não pareciam portugueses. Foram chegando e, como ouvira muitas vezes antes, ouviu exclamações de espanto diante do seu barco. Um deles, recuperado o choque inicial da contemplação do barco, tirou logo parte da roupa e correu em direção ao oceano. Outro sacou uma maquina da bolsa. Reconheceu a máquina. Era uma camera fotográfica. Tinha visto uma quando fora em Londres com a esposa. Tirara uma fotografia que exibia na sala-de-estar de casa. Mas esta que o jovem exibia era bem menor que aquela. Parecia também muito mais leve e moderna. Ele a levava pendurada no pescoço. Não quis pensar sobre isso. Não se interessava por câmeras fotográficas. Apenas fez a pose de capitão do barco enquanto o rapaz se posicionava em vários angulos diferentes.
Dois dos visitantes deitaram sobre a sombra da almeida do seu barco. Ali, pela conversa, soube serem eles um grupo de brasileiros que trabalhavam como voluntários numa organização que ajudava no desenvolvimento do país. O capitão ficou feliz com aquele ato de cortesia entre os países irmãos. Do seu rosto nasceu um discreto sorriso de sexagenário.
Outras duas mulheres que estavam no grupo encontraram um lugar ao sol, deitadas em um pano estendido sobre a areia. Ainda fazendo parte do grupo, um outro que notou não ser brasileiro. Este falava inglês e deveria ser do Zimbabwe, como vira muitos outros com o mesmo sotaque naquela praia anteriomente.
Um grupo de adolescentes gritavam e pulavam na água, muito agitados e despreocupados, como convém aos de pouca idade. Logo, vieram se acercar dos brasileiros e sentaram-se todos no casco do barco, conversando animadamente sobre pensamentos que povoam a mente dos jovens.
Depois, todos eles se foram e só restou um brasileiro, aquele que antes correra em direção a água. Olhou para os lados e não viu seus amigos. Então se aproximou mais do castelo de proa e ficou a olhar e a tocar o barco. Seus olhos se perdiam naquela contemplação. O capitão, então, parou por um momento e se interessou por aquela cena. Se pudesse, queria saber o que se passava na mente daquele rapaz. De alguma forma, quis que o rapaz estivesse pensando no capitão daquele barco. Na tripulação que morrera, na tripulação que se salvara. Porque o capitão sabia que, de alguma forma, aqueles gritos ainda ecoavam. Os comandos, os desesperos, os desfalecimentos, as esperanças, o adeus. Ainda podiam ser percebidos por aqueles que possuem ouvidos.



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