PALESTRA 7: O CONHECIMENTO EM RELAÇÃO A HABILIDADE
PROFISSIONAL
em "The Idea of a University"
John Henry Cardinal Newman
1.
Nas duas palestras anteriores, insistimos em primeiro lugar no
cultivo do intelecto como um fim que deve ser buscado para o seu próprio
benefício e, em seguida, na natureza deste cultivo, ou em que este cultivo consiste. A
verdade, de qualquer tipo, é o objeto próprio do intelecto; o cultivo do intelecto, então, consiste em adequá-lo a apreensão e contemplação da verdade.
Ocorre que o intelecto, em seu estado presente, com exceções que não carecem ser
mencionadas aqui, não discerne a verdade intuitivamente, ou como um todo. Nós
não conhecemos por contemplação simples e direta, nem num instante, mas, por
assim dizer, por partes e acumulação, por um processo mental, pela
circunscrição do objeto, pela comparação, combinação, correção mútua e
adaptação contínua de muitas informações parciais e pelo emprego, concentração
e ação conjunta das faculdades e exercícios da mente. A combinação dos poderes
intelectuais, a ampliação e desenvolvimento e a compreensão são resultados de um
treinamento. E tal treinamento é uma questão de hábito; não é a mera
diligência, mesmo que rigorosa, que introduz a mente na verdade, nem a leitura
de muitos livros, nem o contato com muitos temas, nem as experimentações, ou a
presença em várias palestras. Tudo isto ainda não é o suficiente. Um homem que
tenha realizado todos estes passos ainda estará vagando na ante-sala do conhecimento:
não perceberá o que a sua boca repete, não verá com o olho da mente o que está
diante de si, não alcançará as coisas como elas são, ou pelo menos será incapacidade
de avançar um passo a frente, como resultado do que tenha adquirido, será
incapaz de distinguir o verdadeiro do falso, retirar os grãos de verdade do
amontoado de informações, ordenar as coisas de acordo com o real valor de cada
uma e, se me permitem usar a expressão, construir idéias. Este poder é o
resultado da formação científica da mente, é uma capacidade adquirida de formar
juízos, de perspicácia, sagacidade, sabedoria, de um alcance filosófico da
mente e de autocontrole e serenidade intelectual – qualidades que não advém da
mera aquisição. Os olhos físicos, órgão de apreensão dos objetos materiais, são
dados pela natureza; o olho da mente, do qual o objeto é a verdade, é um
trabalho de disciplina e hábito.
Este processo de formação pelo qual o intelecto, ao invés de
ser moldado ou sacrificado para algum propósito particular ou acidental, ou para
alguma profissão ou habilidade ou ciência específica, é disciplinado para o seu
próprio benefício, para a percepção do seu objeto próprio e para a sua própria
alta cultura, é chamado Educação Liberal. E mesmo que não haja quem tenha
trilhado este caminho até onde ele pode ser concebido, ou quem possua o
intelecto que seja o padrão do que o intelecto deve ser, ainda assim é duvidoso
que alguém não possa não apenas conceber, mas buscá-lo, fazendo do escopo e
resultado deste treinamento o seu padrão pessoal de excelência. Muitos são os
que se submetem a tal mister, garantindo-no para si mesmos em boa medida. A
definição do padrão correto, o treinamento consoante e a condução de todos os
estudantes de acordo com as suas capacidades, é isto que concebo como o papel
da universidade.
(...)
10
Mas é preciso concluir estas reflexões. Hoje me limitei a
mostrar que o exercício do intelecto, além de benéfico ao próprio indivíduo,
também o habilita a cumprir com os seus deveres na sociedade. O filósofo e o
homem do mundo diferem-se quanto ao conceito, mas os métodos pelos quais são
respectivamente formados são basicamente os mesmos. O filósofo possui o mesmo
domínio das questões do pensamento que o cidadão e o homem honrado nos assuntos
de negócios e conduta. Se há que se definir uma finalidade prática para um
curso universitário, eu diria então que é a formação de bons membros da
sociedade. A sua arte é a da vida social e a sua finalidade é a aptidão para o
mundo. Não pode restringir, por um lado, o seu panorama a uma profissão
específica, nem criar heróis ou inspirar gênios, por outro. As obras dos gênios
não se encaixam em nenhuma disciplina acadêmica, as mentes heróicas não se
restringem a um estatuto. A universidade não é o nascedouro de poetas ou
autores imortais, de fundadores de escolas, líderes de colônias ou
conquistadores de nações. Não promete uma geração de homens como Aristóteles ou
Newton, Napoleão ou Washington, Rafael ou Shakespeare, apesar de tais milagres
já terem ocorrido em seu âmbito. Não é também, por outro lado, para a formação
do crítico ou do pesquisador, do economista ou do engenheiro, apesar de que
isto também está contido no seu escopo.
A formação universitária é um grande e ordinário meio para
um grande e ordinário fim. Tem em vista a elevação intelectual da sociedade pelo
cultivo da mente dos homens, do apuramento do gosto popular, do fornecimento de
princípios verdadeiros ao entusiasmo nacional e objetivos sólidos as aspirações
do povo, do oferecimento de grandeza e sobriedade às idéias correntes, da
facilitação do exercício do poder político e do refinamento do trato na vida
privada. A educação oferece ao homem, quanto as suas opiniões e juízos, uma
visão clara e consciente, uma veracidade no seu desenvolvimento, uma eloqüência
na sua expressão e uma força no seu fomento. O ensina a perceber as coisas como
elas são, a descrevê-las com concisão, a desemaranhar a desordem intelectual, a
detectar o sofisma e a descartar o irrelevante. O prepara para ocupar qualquer
cargo com credibilidade e a dominar qualquer matéria com facilidade. O mostra
como se comportar perante os outros, como se colocar no estado de mente alheio,
como se apresentar aos seus semelhantes, como influenciá-los, compreendê-los e
tolerá-los. Ele se sente à vontade em qualquer sociedade e sabe dialogar com todas
as classes; ele sabe quando falar e se calar; sabe dialogar e sabe ouvir; faz
perguntas pertinentes e aprende com os seus semelhantes, quando não tem nada a
ensinar; está sempre pronto, sem ser inoportuno; é uma companhia prazerosa e um
companheiro em quem se pode contar; sabe quando agir com seriedade e quando se
divertir, e tem um tato apurado que o permite gracejar com elegância e ser
sério com propriedade. Ele tem o repouso de uma mente ensimesmada, ao mesmo
tempo que integrada no mundo, e é capaz de encontrar a felicidade no lar e no
longínquo. Ele tem um dom que o serve em público e o apóia na solidão, sem o
qual a sua sorte não é vulgar, e com o qual até o fracasso e o dissabor têm certo
encanto. A arte que conduz o homem a tudo isto é, quanto ao objeto que almeja,
tão útil quanto a arte da riqueza e a arte da saúde, apesar de ser menos
suscetível ao método, e menos tangível, menos certa, menos completa em seu
resultado.